"Eulogy", quinto episódio da sétima temporada de Black mirror
Tentando lembrar de quem você mais tentou esquecer.
Uma coisa muito legal da ultrapassada tecnologia DVD, era que você fazia mais do que assistir ao filme, aquilo era um “objeto de colecionador” para fãs da obra, por conter muitos extras relacionados, como cenas de escolhas das locações e depoimentos do elenco. O DVD da versão de 2005 de Orgulho e preconceito, por exemplo, permitia que você assistisse ao filme inteiro com o áudio dos atores reduzido e foco nos comentários do diretor. Esse é meu filme favorito.
Joe Wright assumiu ter escolhido Donald Sutherland para interpretar o patriarca da família Bennet porque sabia que o ator se emocionaria em cena, em algum momento, sem que ele pedisse. E isso aconteceu, de fato, na última cena do filme — quando Mr. Bennet diz, sorrindo e chorando ao mesmo tempo: “se algum rapaz vier pedir a mão de Kitty ou Mary, peça para ele entrar. Estou à disposição”. O filme acaba sem cena de beijo ou casamento suntuoso do casal protagonista, mas sim com a felicidade de um pai que entregou sua filha favorita ao homem que ela escolheu, numa época em que mulheres raramente se davam esse luxo. E com a sorte desse homem ser riquíssimo e generoso para além do dinheiro, o que salvou a família Bennet não apenas da pobreza, mas também de uma má reputação.
O olhar que Donald Sutherland transmite ao dizer sua última fala é um dos olhares mais bonitos do cinema, demonstrando a boa escolha do ator para o papel e a força do que o tornou tão excelente em sua profissão. Esse nível de excelência, de captar o momento com o olhar e prender a atenção do espectador nesse mesmo olhar, tem também o ator Paul Giamatti.
É engraçado lembrar de Giamatti como, possivelmente, um dos maiores vilões em filmes que assisti na minha infância; mas agora ele é esse cara que vai do rabugento ao cativante, como vimos recentemente em Os rejeitados. Sua participação na sétima temporada de Black mirror não é diferente.
Philip Connarty (Paul Giamatti) é um homem solitário vivendo em uma casa de madeira, onde guarda algumas relíquias — como discos de vinil em duas estantes de seu escritório, uma câmera fotográfica no parapeito da janela da sala e um quadro com fotos penduradas na cortiça. Um dia, cuidando do jardim, ele é interrompido pelo telefone tocando: é uma ligação na qual lhe informam que uma pessoa do seu passado, Carol Royce; que talvez ele conheça pelo sobrenome de solteira, Hartman, faleceu.
O enterro de Carol será na Inglaterra, Philip teme não comparecer (se encontra nos Estados Unidos), mas o contato diz que telefonou por outro motivo: ele é funcionário de uma empresa de tecnologia chamada Eulogy, responsável por apresentar lembranças de uma vida na ocasião de velórios. O nome de Philip foi encontrado entre documentos de Carol. Caso tivesse interesse em participar, o kit Eulogy chegaria em sua casa em minutos, através de um drone.
Quando o kit chega, Philip abre a caixa e se depara com um "disco-guia", um pequeno aparelho que fala com ele, numa voz feminina. Essa voz pede que Philip coloque o aparelho em sua têmpora, feche os olhos e pense em Carol. No entanto, Philip sente dificuldade em fazê-lo, não consegue sequer lembrar do rosto da mulher. Por isso, a voz da guia afirma que lembranças palpáveis podem ajudar: como fotografias e músicas, mas ela não pode fornecer esses dados, pois se mesclariam às lembranças dele.
Com muita má vontade e pressa, Philip vai até o sótão e encontra uma caixa com fotografias de momentos que viveu ao lado de Carol, fazendo com que sua viagem de recordação inicie. Pois, a cada imagem mostrada, Philip "entra" nas fotografias e se movimenta por elas. É quando sua guia toma forma humana, fazendo-lhe companhia. Philip afirma ter somente três fotos relacionadas a Carol.
Na primeira foto, Carol está de costas para a câmera, mas a imagem capta o exato momento em que ela e Philip se conheceram. Fica claro para a guia que ambos iniciavam um romance. Também é evidente que Carol flertava com Philip enquanto estava noiva, pois a foto mostra um anel de noivado em sua mão esquerda. Philip comenta que isso não o surpreende, era bem típico do caráter que Carol tinha, o que demonstra uma ferida ainda aberta na vaga memória de Philip.
A segunda fotografia traz a lembrança de uma festa, mas Philip e Carol não estão na foto, embora estivessem no evento. A guia pede que ele reconheça, primeiro, as pessoas presentes na margem, como Emma (amiga dele) e Amanda (amiga dela). A guia também vê que há um disco tocando na vitrola. Como música ajuda nesses momentos de recordação, ela faz a música tocar, o que estimula Philip a caminhar pelo ambiente, encontrando um corredor no qual teve sua primeira conversa mais extensa com Carol. Aquela conversa terminou sendo a primeira noite dos dois juntos, mas ainda não foi possível ver o rosto da moça. E Philip não considera essa uma lembrança adequada para apresentar no velório da falecida, assim como a fotografia anterior.
A terceira foto mostra Philip em um corredor, olhando para um quarto no qual Carol toca violoncelo, tendo em vista que essa foi sua grande paixão. Mas, ao entrar na fotografia acompanhado de sua guia, Carol não está lá. Infelizmente, a música que Carol tocava não está disponível em nenhum serviço de streaming, pois ela mesma compôs. Essa última fotografia, assim como as anteriores, não é suficiente para construir uma memória relevante no momento de velar o corpo de Carol e celebrar sua vida, e a guia lamenta que seja tudo que Philip tem sobre Carol. Mas, na verdade, isso não é tudo.
Philip confessa ter outras fotografias, mas elas não vão ajudar na lembrança. O motivo é que sua raiva o consumiu tanto, mas tanto, que todas as fotos do rosto de Carol estão rasuradas. Ou ele riscou, ou ele cortou o rosto dela nas fotografias. Ter se apaixonado por Carol foi um evento maior do que tudo que Philip tenha passado em sua vida. Por isso, um ano e meio depois que ambos terminaram, ele se dispôs a apagá-la de sua memória, através dessas fotos. Ambos ficaram três anos juntos, mas ele levou quinze para superar.
Apesar das imagens rasuradas, Philip mesmo assim entra nelas para recordar momentos. Como quando ele e Carol viajaram até o lugar em que Philip vive atualmente, uma casa herdada de seus pais. A partir dessa viagem, com promessas de amor, Philip e Carol decidiram morar juntos e até formar uma banda, na qual, por incentivo de Philip, Carol ficou no teclado e não no cello. A guia de Philip foca bastante nesse fato, pois o instrumento principal de Carol era o violoncelo, tanto que ensinou sua própria filha a tocar.
Em seguida, Philip mostra o conjunto de três fotos da mesma festa. Mais uma comemoração, dessa vez de halloween. Todos os presentes fantasiados, Carol sentada em uma mesa acompanhada de outro rapaz dando em cima dela, enquanto Philip trabalhava no bar aquela noite. Ele ficou com ciúmes da companhia de Carol, ela teve ciúmes do fato de que Emma não parava de cercá-lo. No dia seguinte, Carol teve uma audição para a filarmônica do Brooklyn, mas infelizmente não passou. O desemprego durou pouco tempo, pois uma das amigas de Carol voltou para a Inglaterra e conseguiu para ela o estágio em uma orquestra. Empolgada, Carol partiu, deixando claro que seriam apenas alguns meses. Carol enviava postais toda semana, reafirmando seu amor e compromisso. Philip combinou de reencontrar Carol na Inglaterra, naquele outono.
Passando pelos postais, Philip se depara com a foto dele fazendo um gesto obsceno para a câmera no período em que Carol esteve fora do país. De modo que a guia repara que ele não esteve por todo aquele tempo sozinho. Entrando na fotografia, a guia vê que a companhia de Philip, a pessoa que tirou aquela foto, foi Emma, sua amiga que trabalhava no bar durante a festa de halloween. É quando Philip começa a se explicar: era seu aniversário, praticamente o forçaram a beber uns drinks no trabalho, Emma o acompanhou até seu apartamento e foi apenas uma vez. A questão é que o telefone tocou, Emma atendeu e era a voz de Carol do outro lado.
A guia de Philip o coloca contra a parede, perguntando o que afinal Carol fez de tão hediondo para deixá-lo com todo esse remorso, já que o errado na história, até o momento, era ele. Philip traiu Carol. Então, por qual motivo a culpa do término era dela?
É chegada a hora de apresentar a última lembrança.
O combinado era Philip encontrar Carol alguns meses depois de seu aniversário, de modo que ele já tinha comprado a passagem e até reservado a suíte de um hotel que não poderia pagar, porque Carol morava com uma família britânica. Apesar da briga pelo que Philip fez, Carol sabia de sua chegada e ambos se encontraram quando ela terminou uma apresentação. Philip levou a mala de Carol para o hotel e os dois saíram para jantar. Tinham reserva em um restaurante chique e o plano era pedir Carol em casamento.
Embora Philip visse Carol ainda mais bonita que antes, reconheceu que ela estava diferente. Disse que tinha engordado e não beberia o champanhe ele pediu. Apesar da recusa ter soado irritante para Philip, ele relevou e colocou a caixa de joia na mesa, aberta com o anel. Mas a reação de Carol foi inesperada: ela ficou extremamente quieta, sem olhar para ele; que se sentiu exposto, porque todo o restaurante estava ciente de que ele faria um pedido como aquele, tinha informado no momento da reserva. Depois de ter pedido duas vezes que Carol dissesse algo, qualquer coisa, Philip bateu com o punho na mesa, o que atraiu olhares do restaurante inteiro. Carol então se levantou e foi embora.
Sentindo pena de si mesmo, Philip terminou a garrafa de champanhe no restaurante. A guia, então, perguntou se ele se questionava sobre o que Carol estava sentindo naquele momento. E fez ele ligar os pontos: ela se recusou a beber e havia engordado. Era outubro de 1992, ela estava grávida de Kelly Royce, sua filha única e guia de Philip, transformada em um avatar descartável pela Eulogy, para se comunicar com Philip como uma guia temporária, programada com os mesmos pensamentos e personalidade da Kelly original.
Foi uma transa casual com um dos rapazes da orquestra. Kelly nem chegou a ter mais do que seis encontros com o próprio pai. Seus pais nunca namoraram. E, da última vez que se viram, o pai conversou com ela sobre uma conspiração online e morreu de COVID no ano seguinte.
Kelly recorda que sua mãe disse ter escrito uma carta para Philip, mas ele nunca respondeu. Philip nega, diz nunca ter recebido essa carta.
Saindo da lembrança do restaurante, Philip admite que só gostaria de lembrar de Carol, recordar o seu rosto. Kelly pergunta se na caixa com fotografias há mais alguma coisa que refresque sua memória. Ele encontra uma máquina fotográfica descartável, comum em aeroportos nos anos 1990. A ideia era tirar fotos com Carol por Londres, mas isso nunca aconteceu e, no entanto, ele percebe que uma fotografia foi tirada nessa câmera.
Ao revelar a foto, vem também a decepção: não há nada demais, só a imagem de vários objetos no chão do hotel, para onde ele voltou após o falido pedido de casamento e percebeu que a mala de Carol não estava mais lá, estabelecendo o fim. Philip descontou a raiva e frustração quebrando o quarto. É quando Kelly vê uma carta no chão, fechada, com o nome de Philip. Era a letra de Carol. Mas Philip, agora, não consegue tirar a carta do chão, ela é apenas a lembrança de uma carta.
Kelly pede que Philip repasse o que fez depois de tirar aquela fotografia. Ele destruiu o quarto, bebeu até não poder mais e, quando acordou, tudo estava limpo, seus pertences organizados em uma pilha, que recolheu para dentro da mala. É quando se dá conta de que a carta pode estar bem ali, dentro de algum livro ou folheto. A carta que ele nunca leu.
Sua teoria estava certa. Carol iniciou a carta dizendo que precisava contar algo para ele. Se desculpou por ter travado, por não ter conseguido falar anteriormente. Pediu que ele não a odiasse. Carol ficou furiosa no dia do aniversário de Philip, quando telefonou para lhe fazer surpresa, mas Emma atendeu. De modo que ela se envolveu com quem se tornou o pai de sua filha. Sua menstruação atrasou e ela não sabia o que fazer. Estava arrependida, mas tinha fé que os dois ainda poderiam dar certo, embora não soubesse como ele iria reagir. E, se quisesse conversar, poderiam se encontrar no dia seguinte, na porta do palco, após a matinê. Por nunca ter lido essa carta no tempo certo, Philip não compareceu ao encontro.
Foram necessários mais de trinta anos e uma tecnologia avançada para Philip ter ciência de uma das mais antigas formas de comunicação. Com aquela explicação sucinta, muita dor teria sido evitada. Na carta, Carol expressou que entenderia caso Philip não aparecesse, mas tinha esperança de que ele o fizesse.
Desnorteado com esse desfecho, Philip tira de uma gaveta a fita cassete na qual está gravada a música que Carol compôs no violoncelo. Philip começa a ouvir olhando para a fotografia em que está no corredor, observando Carol tocar em seu quarto. É quando, finalmente, consegue vê-la. E temos a visão final não só do rosto sorridente de Carol, mas também do olhar emocionado de seu namorado já envelhecido, lembrando que um dia ela existiu. Esse mesmo olhar que vemos em Sutherland também na cena final de Orgulho e preconceito, e no rosto de Giulietta Masina durante a conclusão de Noites de Cabíria.
A tecnologia Eulogy muito se assemelha a mesma apresentada em diversos episódios de Black mirror, cuja primeira aparição se deu no terceiro episódio da primeira temporada, intitulado “The entire history of you”. Tecnologia reverberada em “Natal branco” da segunda temporada, e até em “Hotel Reverie” nessa última. Em todos esses casos, os olhos de quem utiliza a tecnologia ficam embranquecidos e a pessoa age como se estivesse hipnotizada. O que me leva a crer que “Eulogy” seja o episódio pontapé, o “onde tudo começou”: essa empresa prestava serviços funerários e evoluiu para os famosos cookies, praticamente presentes em todas as temporadas da série.
Eu, que gostei imensamente de “Pessoas comuns”, o primeiro episódio dessa temporada, afirmo agora que “Eulogy” é meu favorito da sétima temporada e, com certeza, um dos meus prediletos em toda a série. É sensível, possui o tempo certo (não se prolonga, mas também não pula etapas), mantém o suspense e até quebra expectativas. Você passa boa parte do episódio acreditando que Carol é a própria guia de Philip, por exemplo. E lidar com o tema da memória é particularmente emocionante para mim. Pois quantas vezes deixei de lado momentos incríveis com pessoas que amei para focar somente no negativo, nos traumas que elas deixaram? Inúmeras! Isso inclui meus pais, amigos, amores que tive e até meu terapeuta. Mas a vida não é feita apenas dos instantes que erraram conosco e, por falhas simples de comunicação, como demonstrado nesse episódio, perdemos a chance de uma vida inteira perto de quem amamos.
Acertaram em cheio ao escalar Paul Giamatti e destacá-lo no cartaz do episódio. Só podia ter um ator como ele para fazer acontecer. É o caso em que a atuação, aliada ao roteiro, supera a direção.