Quando era menina, mas muito menina, e comecei a entender que meus gostos estavam se moldando, que eu não era mais dependente da influência de minha irmã mais velha para gostar de alguma coisa, me apaixonei por Caetano Veloso.
Isso se deu com certeza porque minha mãe passou a comprar seus discos na Lojas Americanas, a Amazon de antigamente, onde tudo era mais barato do que em lojas especializadas. Mas ela dificilmente comprava os discos do artista, mas sim coletâneas, queria ouvir suas músicas favoritas. Nunca vou esquecer que era um domingo, eu fazia a lição da escola, enquanto o aparelho de som estava no último volume, como sempre. Foi a primeira vez que ouvi “Tigresa” e fiquei encantada por aquela letra. Eu me apaixonaria, ainda, por muitas mulheres de Caetano, obviamente sonhava em me tornar uma delas. E uma dessas mulheres Caetano “dividiu” com um cineasta italiano, pois foi Giulietta Masina, atriz e esposa de Federico Fellini.
A música “Giulietta Masina” aparece pela primeira vez no disco Caetano, de 1987. Ela começa com uma fala do filme Noites de Cabíria, que representa a última frase “momentos antes da tragédia acontecer”, quando a protagonista olha para o pôr-do-sol que se inicia e constata: “Che luce strana”. E então, temos uma descrição de como foi a atriz italiana Giulietta Masina para Caetano Veloso: “Pálpebras de neblina / pele d’alma / lágrima negra tinta” e toda a canção é memória afetiva dos primeiros contatos de Caetano com o cinema. Mas a primeira vez que ouvi essa canção foi no disco Omaggio a Federico e Giulietta, de 1999. Quando me perguntam qual é meu disco favorito de Caetano, respondo que é Omaggio a Federico e Giulietta. Quando perguntam qual é o melhor disco dele, minha resposta é a mesma. Há quem fique contrariado, “como assim não é o Transa?”, não, não é. Transa é um grande disco que gente jovem adora descobrir. Omaggio a Federico e Giulietta é todo meu coração. Ele tem um sentido de nostalgia que eu já pequena entendia. E a boa sensação que esse disco me traz até hoje é de… sono. Pois é. Entro num estado de relaxamento que poucas vezes adquiro. A versão de “Giulietta Masina” em Omaggio a Federico e Giulietta é estupenda, melhor do que a primeira em estúdio. Essa fase do Caetano com Jaques Morelenbaum foi “chique”: Caetano usava terno, parecia um infiltrado na alta sociedade tentando se enturmar, contradizendo seus discos e apresentações anteriores? Sim. Mas a graça de Caetano Veloso está, também, em sua capacidade de reinvenção. Ele atinge o público que quiser, não importa quantas gerações passem — e poucos grandes talentos musicais conseguem isso. Caetano de Fina estampa (1994) até A foreign sound (2004) é meu período predileto de sua carreira, quando ele decide gravar discos inteiros em espanhol, italiano e inglês; sem perder a baianidade e a carioquice tão presentes em Livro (1997), Prenda minha (1998) e Noites do norte (em estúdio no ano 2000 e ao vivo em 2001). Depois de tudo isso, Caetano decidiu vestir uma jaqueta jeans e gravar três discos de rock — e que bom foi ter sido adolescente justamente quando ele voltou a se conectar com o público jovem.
Mas, embora Omaggio a Federico e Giulietta seja meu disco favorito e que considero o melhor de Caetano, eu nunca, NUNCA vi um filme de Fellini até noite passada.
O problema é que me considero burra. Não importa o quanto digam que sou inteligente e que tenho potencial, me acho burra. Burra e despreparada para a maioria das coisas. Entender literatura russa, por exemplo. Assistir filme em preto e branco de um cineasta europeu. Se gosto da franquia 007, com certeza nada disso é para mim. Fico esperando o momento de me sentir pronta para certas artes, e muitas vezes esse momento nunca chega.
Mas como estou feliz em ler as críticas cinematográficas que Caetano escreveu ao longo da vida, e muitas delas foram compiladas no livro Cine Subaé - escritos sobre cinema (1960-2023)! Quando comprei o livro, no início desse ano, sabia que não poderia escapar mais de assistir Fellini, porque Caetano se repete e trataria muito de Fellini e Masina nessas críticas, tinha certeza. Foi em Santo Amaro, nos dois únicos cinemas da cidade, que Caetano conheceu o cinema de Fellini. Cine Subaé conta com várias passagens em que declara seu amor, até mesmo o encarte com toda a história de como chegou a fazer o show que gerou o disco Omaggio a Federico e Giulietta, uma relíquia: “O ouvinte do disco é poupado, com esse texto, das longas falações a que me entreguei durante a apresentação. Eu estava tão emocionado e tão imbuído do senso de importância do evento que não tive vergonha de às vezes falar por nove minutos entre uma canção e outra. Em mau italiano e com a garganta ameaçada”. Caetano fez o show em Rimini a convite de Maddalena, irmã de Fellini, representante da Fondazione Fellini. “Maddalena deplorava (quase tanto quanto eu) que o casal tivesse morrido sem que um encontro pessoal nos tivesse sido concedido pelo acaso, o destino, Deus, os deuses”, ele conta. E sei que nunca chegarei a conhecer Caetano Veloso, embora o tenha visto bem de perto algumas vezes, pela sorte que sempre tive em chegar cedo nas suas apresentações para garantir meu lugar bem de frente para o palco, sentindo que ele se comunicava só comigo. Mas consumir sua arte é uma forma de pensar que ele está por perto. Essa sensação de acolhimento com certeza ele sentiu assistindo aos filmes de Fellini.
A trilha sonora dos filmes de Fellini, composta por Nino Rota, identificava outra de suas parcerias de sucesso, e por isso quero destacar o trecho do artigo “Nino Rota: imagens melódicas”, que Caetano publicou na Bravo! Online em 22 de janeiro de 2002: “Quando compus ‘Giulietta Masina’, procurei — com muito esforço — evitar qualquer parecença com a música de Rota. Fui para o Nordeste, citei minha própria ‘Cajuína’, porque eu queria dizer que eu, brasileiro, esta pessoa do interior da Bahia, este músico popular que fez músicas desse jeito que faço, eu é que queria falar de Giulietta. E dela. Não do cinema de Fellini ou da música que Rota fez para ele. Um crítico inglês da revista Wire (eu acho) falou muito mal do meu disco Omaggio a Federico e Giulietta, dizendo que este quase nada tinha a ver com os filmes de Fellini, que soava simplesmente como mais um disco de música brasileira. É isso aí. O imbecil queria algo que soasse como Nino Rota. Ignorante das coisas brasileiras (mas também do cinema italiano), portanto incapaz de entender onde Fellini/Rota/Masina entra na ‘Ave Maria’ de Augusto Calheiros, no fado ‘Coimbra’ e em ‘Chega de saudade’, concluiu até que o disco era uma ‘sopa de marshmallow’ (a doçura e o sentimentalismo — neste caso, obrigatórios — tinham que levar essa porrada neopunk. Mas Rota está em ‘Luz do sol’. E sobretudo está dentro de mim. As músicas que não parecem com as dele estão cheias de sua presença”.
E meu segundo maior incentivo para começar a ver filmes de Fellini está em Paolo Sorrentino: vivíssimo e realizando filmes belíssimos, também italiano, especificamente napolitano, mas que um amigo meu define como “imitador de Fellini”. Se imita e sai cada obra-prima, então ficarei feliz em conhecer os filmes que inspiram Sorrentino.
Então comecei com Noites de Cabíria.
Em Noites de Cabíria, de 1957, Giulietta Masina interpreta Cabíria, a prostituta, mulher da vida. Li uma crítica no site Ponto crítico que me deu o interessante contexto de que, quando Noites de Cabíria foi filmado, a Itália tinha saído apenas doze anos da Segunda Guerra Mundial, de modo que o país estava afundado na extrema pobreza por toda parte, sendo gritante a diferença entre pessoas mais abastadas da sociedade e miseráveis. Tal cenário é constantemente lembrado no filme, embora de forma implícita. Cabíria, órfã desde cedo, tendo sido levada a exercer a profissão mais antiga do mundo, apesar de sua condição, orgulha-se de ter casa própria — lugar decadente e afastado do centro de Roma, e cuja vizinhança é formada por outras mulheres como ela, também prostitutas. Toda a esperteza e desconfiança que Cabíria demonstra ao longo do filme desaparecem sempre que ela encontra esperança na forma de um homem que ela imagina que pode tirá-la dessa vida. O filme começa com Cabíria sendo jogada no rio por um namorado que rouba sua bolsa e sai correndo, enquanto ela quase se afoga. Volta para casa andando e sem um dos sapatos, entra pela janela porque a chave estava na bolsa. A partir disso, o filme é dividido por episódios. Se Noites de Cabíria ganhasse um remake pela Netflix, por exemplo, cairia bem no formato série (mas, honestamente, espero que não tenham essa ideia). Nesses episódios, Cabíria conhece diferentes homens em suas noites trabalhando.
Em uma dessas noites, Cabíria flagra um ator famoso, Alberto Lazzari (Amedeo Nazzari) brigando com a namorada, que o abandona. Desolado, não perde tempo e não hesita em chamar Cabíria para entrar no seu carro e lhe fazer companhia naquela noite. Juntos, vão para uma boate onde vemos que Giulietta Masina foi a italiana mais baixinha do cinema, e Cabíria dança de forma desengonçada e constrangedora, apesar de feliz. Como aquela é a sua vida, Lazzari parece o tempo todo entediado, enquanto Cabíria se deslumbra diante da oportunidade de sair com um astro do cinema. Da boate, partem para a mansão de Lazzari, onde Cabíria encontra um mundo totalmente oposto ao que ela conhece: a casa é sofisticada e moderna, Lazzari abre o armário de roupas acionando um botão. Aquela é a vida com a qual Cabíria sonha e acredita ter alcançado, até que a namorada de Lazzari invade a casa e o ator esconde Cabíria no banheiro da suíte, onde ela passa a noite, para ser mandada embora na manhã seguinte, sendo paga pelo serviço que não prestou.
Em outro momento, pega carona com um cliente e é deixada em um suposto atalho, muito distante de qualquer possibilidade de voltar para casa. É madrugada. Um homem para o carro na estrada ao lado dela, causando-lhe medo. Mas ele só tem boas intenções, pois leva mantimentos para a gente pobre que vive em cavernas. Aqui, cabe um parêntesis muito particular meu: um italiano me convenceu a começar a fazer trabalho voluntário e eu o acompanhei durante meses em uma ONG da qual fazia parte, isso no ano passado. Levávamos marmita, água e cobertores para moradores de rua. Eu me sentia muito próxima daquelas pessoas, considerando que sou sozinha nesse mundo e dependo do meu trabalho para ter um teto sob minha cabeça. A qualquer momento, dada minha instabilidade profissional, posso acabar morando na rua, meu maior medo vivendo em São Paulo. Logo, para mim, esse é o momento mais significativo do filme, pois, mesmo que Cabíria sinta encantamento e curiosidade pelo desconhecido que pratica boas ações, imagino se ela contempla aquele que é o pior dos destinos: não ter onde morar, não ter esperança.
Cabíria e suas amigas participam de uma procissão, na qual ela pede, a uma santa, o milagre para mudar de vida. E pouco depois acontece de Cabíria entrar por acaso em um teatro, para assistir ao espetáculo de mágica exibido naquela tarde. Quando convidada ao palco, o filme abraça o surrealismo — e é tão lindo! Senti, nessa passagem, o mesmo que sinto quando escuto Omaggio a Federico e Giulietta, quando sou arrebatada pela sensação de relaxamento: é onírico, estou com um pé na realidade, mas muito próxima de sonhar. O mágico “hipnotiza” Cabíria para mostrar o seu futuro: com um homem chamado Oscar, que lhe pedirá em casamento.
Saindo do teatro, ela é abordada por Oscar d’Onofrio (François Périer), um contador que viu a espontânea performance de Cabíria no palco e lhe diz que acredita ser o destino o responsável por aquele encontro, já que nunca foi naquele teatro, mas gosta de visitar lugares que ainda não conhece. Seus pais também se foram cedo, ele é absolutamente sozinho. Cabíria hesita, mas aceita sentar numa mesa de bar para compartilhar com Oscar um conhaque. Cabíria também hesita em reencontrá-lo, mas no fim de semana seguinte vai até a estação rodoviária e os dois iniciam o romance. Cabíria volta para casa mais sonhadora e romântica do que nunca, e vai trabalhar distraída quando possíveis clientes lhe chamam. Define, no entanto, que o próximo encontro com Oscar será o último, afinal, ela é prostituta, no momento em que contar para ele, não será considerada para compromisso. Mas Oscar não se importa e pede Cabíria em casamento mesmo assim, no que ela aceita, volta para casa; vende a própria casa por um valor abaixo, dada a pressa, despede-se da melhor amiga e parte em lua de mel.
Nós, que assistimos, sabemos que tipo de homem é Oscar, e sabemos exatamente o que vai acontecer desde seu primeiro instante na tela. O problema de Cabíria é sua maior virtude: ela não é inocente das dores e maldades desse mundo, mas é ingênua o bastante para continuar tendo fé. Assim, durante a lua de mel, enquanto Cabíria conjetura sobre ainda não acreditar na sorte que tem, reconhecendo em Oscar “um anjo, um santo” que escolheu desposar logo ela, a “puta de uma outra esquina”, Oscar claramente não aguenta mais manter a farsa. Leva Cabíria para um lugar mais afastado, o casal atravessa árvores e para diante de um rio. Oscar está estranho, Cabíria percebe a luz estranha e pergunta, várias vezes, o que está acontecendo. “Você sabe nadar?”, Oscar pergunta. “Não, e uma vez quase me afoguei!”, relembra Cabíria o início do filme, conectado ao final, mas não pode ser. Cabíria entende tudo e pensa que vai morrer ali. Entrega a bolsa cheia do dinheiro da venda da casa e de suas economias para Oscar, que foge correndo, tal como seu namorado anterior. Anoitece. Cabíria não tem nada além da roupa do corpo. Depois de muito chorar afundada na terra, levanta e caminha na direção da cidade. Encontra um grupo de crianças e jovens cantando e dançando, se vê inevitavelmente tomada por aquela alegria e o filme termina com a “lágrima negra tinta” escorrendo de um dos seus olhos.
Eu entendi tudo. Todo o fascínio de Caetano por Giulietta Masina é compreensível depois que você assiste a um filme como esse. Oscar de melhor filme estrangeiro de Fellini, o reconhecimento em Cannes de melhor atriz para Masina. Ela é pequena, espevitada, tem o rosto de uma garota esperta, mas a cabeça é de vento e o coração é puro. A sobrancelha escura num desenho que nunca vi, expressivas, em contraste com seus cabelos loiríssimos. Ela não foi a mais bonita das atrizes italianas, nem chegou perto de ser um desses deslumbres que faz a cabeça dos homens. Mas foi a mulher que Fellini amou e escolheu como parceira no trabalho. Foi também musa de Caetano Veloso, talvez a maior delas, porque inalcançável. Na música “Giulietta Masina”, Caetano diz que “aquela cara é o coração de Jesus” e lembro de outra de suas canções, essa sim do disco Transa, ecoando: “Nine out of ten movie stars make me cry / I’m alive”. Para mim, se a bondade tem um rosto, é o rosto de Masina como Cabíria. Ela chora sua lágrima negra porque sabe que vai se reerguer de novo — e choramos junto com ela.
Noites de Cabíria está disponível na plataforma Mubi.
Muito bom. Assisti Noites de Cabíria recentemente e lembrei vagamente desse projeto do Caetano, vou revisitar pois nunca prestei muita atenção. Gosto quando falam de música brasileira aqui também!
que texto lindo. vou assistir. vai ser meu primeiro filme dele.
um beijo