Hoje comecei meu dia rindo com a seguinte história, a caminho do trabalho: um adolescente descobriu que o fornecedor das balinhas que são vendidas na cantina da escola ficava na esquina da mesma. Ele poderia comprar por 20 centavos na bombonière cada balinha que a cantina da escola vendia a 1 real. Revendendo para os colegas por um valor mais justo que o da cantina, faria um lucro interessante. Seu irmão mais velho também entrou para os negócios. Os pais, orgulhosos com o espírito empreendedor dos meninos, mas também preocupados com as normas da escola, sugeriram que o caçula perguntasse aos inspetores, só para ter certeza, se aquela atividade era permitida. O garoto respondeu: “vocês não estão entendendo, EU VENDO PARA OS INSPETORES”. Um dia, o filho mais velho pediu para utilizar uma chave pix, tendo em vista que a maioria dos colegas não levava notas de dinheiro na mochila, no que seus pais foram contra, aí já era demais. Então, o garoto pegou a mãe em um momento em que ela estava cansada, sonolenta, quase dormindo, e perguntou: “mãe, qual seu CPF?”, ao que ela disse, sem nem lembrar depois. Em seguida, com uma foto do rosto da mãe nesse momento “nem lá, nem cá”, o filho mais velho criou uma chave pix para receber pelas balinhas. O plot-twist é que seus pais são formados em Direito e, pelo menos um deles, especializado em direito tributário.
E voltei para casa chorando com a história da Vanessa Barbara, sobre o relacionamento abusivo que ela sofreu, anos atrás. “Essa não é uma história sobre homens que se reunem para agredir, é sobre mulheres que se unem para se defender. E ela não acaba em silêncio”. A recomendação de hoje é tripla: para ver, para ouvir e para ver e ouvir. E todas elas envolvem um pouco da mesma pessoa, a talentosíssima Vanessa Barbara.
“CPF na nota"? Um episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta.
Acontece que eu tinha dezenove anos e Vanessa Barbara já era minha heroína. Naquela época, eu nem sonhava em morar em São Paulo. Estava recém-casada e curtindo meu primeiro emprego dos sonhos, pois trabalhava na segunda maior livraria Saraiva do país: ficava em Salvador, Bahia (a título de curiosidade, o primeiro lugar ficava no Amazonas); quatro andares dentro de um shopping, o último dedicado a um restaurante. Eu era um bebê, crua para uma vida cheia de expectativas, nenhum trauma, nenhum remédio controlado na mesa de cabeceira. Estava criando minha coleção de livros e um dos primeiros foi O livro amarelo do terminal, uma pequena obra de arte da Vanessa publicada pela Cosac Naify. Porque eu queria ser escritora, porque Vanessa era jovem, porque ela tinha sido publicada por uma grande editora e parecia fazer tudo com excelência: aquela era a vida que eu queria ter. Era como olhar para uma irmã mais velha e pensar “quero ser ela” (tenho irmã mais velha e conheço a sensação). Mas o ano era 2011, quando um verdadeiro inferno na vida pessoal de Vanessa começava - e eu não fazia ideia. Eu não tinha contato com ela além do Twitter (possivelmente). E não me lembro quando foi que furou a bolha o motivo do fim de seu casamento com um famoso editor do círculo literário do qual eu tentava me aproximar, mesmo que geograficamente distante. Essa é a história que Vanessa detalha no episódio “CPF na nota?”, da Rádio Novelo Apresenta. Mesmo tendo acompanhado Vanessa todos esses anos em suas redes sociais, nunca fui atrás de saber pessoalmente dela, de saciar uma curiosidade minha, que eu sabia muito por cima ter sido um trauma - palavra que ela usa de forma recorrente no episódio, com muita razão e propriedade. Nos últimos dias, porém, vi uma movimentação nas redes da Vanessa e também de amigos em comum quanto a esse episódio, até que minha amiga Rita enviou o link que, dada a correria cotidiana, levei umas 72 horas para abrir. E desabei com a narrativa sobre 15 homens sendo cúmplices da tentativa de destruir a vida de uma mulher, sendo que um deles era o que passava mais confiança e alguns outros fingiam ser amigos próximos da vítima.
Vanessa tinha apenas 23 anos quando, trabalhando como freelancer para uma grande editora, envolveu-se amorosamente com um editor, o que culminou no casamento de ambos. Um homem que, segundo Vanessa, não se atentava às tarefas domésticas, deixava os pratos sujos na pia, esperando que ela desse conta. Ao ser contrariado, tinha acessos de fúria. Vanessa definiu a si mesma como um videogame usado que veio de longe, por exemplo da China, demorou um mês para chegar e que o Tito - nome fictício do sujeito -, abriu o pacote com entusiasmo, jogou sem parar, mas percebeu um defeito no aparelho, que travava em alguns jogos. Até que passou raiva e o tirou da tomada, deixando-o esquecido em um armário. E essa definição coube, também, para o relacionamento entre Vanessa e Tito. Ela chegou a pensar que os casamentos, afinal, eram assim. Porque mulheres da sua família passaram pelo mesmo.
Eu tinha 19 anos quando me casei com um homem de 42. E, quanto mais olho para trás e me deparo com o que é feito com mulheres dentro de relacionamentos até os dias de hoje, penso que tive sorte em não me tornar parte de alguma estatística. Mas não estou me gabando. Meu casamento não foi uma cilada, fora a diferença enorme de idade, que naquela época não me pareceu um problema, eu me sentia relativamente bem. Só que o meu marido não era próximo de mim. Ele não gostava de dormir de conchinha, pois reclamava do calor. Demonstrações públicas de afeto? Jamais. Eu era (e talvez ainda seja) uma pessoa que necessitava de palavras, mas ele nunca disse que me amava. Demorei muito para perceber que meu casamento era igual a dinâmica de relacionamento que meus pais tiveram comigo: nenhum afeto envolvido, apenas tolerância. Então, tal como Vanessa, eu também pensava que casamentos eram assim, porque tive em casa durante boa parte da vida aquele exemplo.
Uma tia minha viveu relacionamentos bomba-relógio ao longo da vida e, até hoje, após diversas tentativas de intervenção, afirmo que é só questão de tempo para que o pior lhe aconteça. Talvez porque tive essa situação familiar tão próxima, de alguém que precisava justificar no trabalho o motivo daquele olho roxo, ou por que minha prima estava com o braço enfaixado; os gatilhos de um homem pensando em me fazer mal se apresentaram, mas nunca se concretizaram. Ou Deus me protege muito, ou tive sexto sentido para me afastar com muita antecedência. Mas eu também fiz mal para os homens da minha vida. Traí alguns, sob a justificativa mais idiota, para saber se eu ainda gostava daquela pessoa. Contei e me arrependi todas as vezes, mas a última foi tão ruim, que prometi a mim mesma que só assumiria compromisso quando amadurecesse essa questão, pois machucar pessoas não é do meu feitio. Vivo sozinha desde outubro de 2022. Não estou mais feliz com isso, mas aderi a honestidade radical com quem se deita comigo e me sinto menos pior.
Recentemente, soube que fui traída por um mulherengo com quem tive um caso muito breve durante a pandemia. Soube e ri. Nem poderia culpá-lo, vivíamos em estados diferentes e eu não era inocente quanto a fama dele. Hoje, casado pela segunda vez (a primeira esposa, adivinhem? Ele também traiu e a informação tornou-se pública), ele explora a atual, que já foi informada sobre a personalidade do encostado, mas preferiu fechar os olhos mesmo assim. Se encontram numa situação de vida dificílima, e torço para que ela saia dessa. Ele, já não tenho esperança e nem confiança: é um sedutor de lábia incrível, que provavelmente passará o resto da vida fazendo vítimas.
Falando assim, da Vanessa, minha tia e a atual do meu ex, parece que culpo mulheres pelas situações abusivas nas quais eventualmente se encontram. Mas não é sobre isso. Independente da idade e do grau de amadurecimento, todas nós, na sociedade e cultura em que vivemos, estamos inseridas de alguma forma em dinâmicas abusivas em que homens estão no patamar mais elevado. Você, mulher, depois de ouvir todo o sofrimento que Vanessa passou nas mãos do Tito, que foi muito alem de uma traição carnal, mas sim de uma quebra de confiança “sistemática”, conforme a autora pontuou; se tiver interesse em fazer sua pesquisa e ligar os pontos, vai chegar no nome verdadeiro do sujeito, que tem, por exemplo, 82 amigos em comum comigo numa rede social, incluindo mulheres premiadas da bolha literária eixo Rio/São Paulo e homens super esclarecidos e progressistas com os quais converso diariamente. Pessoas que, essa semana mesmo, brigaram comigo quando afirmei ser inútil discussões como “o que eu faço com os livros do Neil Gaiman?”. Reforço que só dizemos que vamos queimar a coleção de Sandman porque parece uma atitude muito correta e, ao mesmo tempo, transgressora. Quando a verdade é que não faz sentido julgar quem é fã da maior parte dos ídolos do sexo masculino (não deixam de ser talentosos e prestigiados a partir do momento em que são descobertos por seus crimes), assim como pouco ou quase nada acontecerá a esse homem. Veja Tito como grande exemplo: hoje é dono de uma editora em crescimento constante e cujos livros todo mundo tem em casa. Já os “castigos” de Vanessa foram muitos: ela foi condenada pelo tribunal da internet quando, lá atrás, divulgou o que houve. Errada foi ela em expor, não o homem que traiu e os quinze amigos que foram cúmplices de um esquema de mentiras. Vanessa se afastou das feiras literárias e da linha 4 amarela do metrô, mas ainda encontra esses quinze queridos em eventos, alguns deles são/foram seus empregadores e ela sabe das oportunidades que perdeu e perderá por tamanha exposição. Muitos provavelmente são nossos amigos no Facebook, se você também faz parte desse meio.
O episódio “CPF na nota?” da Rádio Novelo Apresenta está disponível na plataforma Spotify.
Três camadas de noite, um livro de Vanessa Barbara.
Eu só conheci Vanessa Barbara pessoalmente ano passado.
Ela estava linda, na Livraria da Tarde, em Pinheiros: com um vestido rosa de comprimento midi, autografando seu lançamento que eu já tinha recebido em casa, assinado por ela e com um desenho da Batata, a alcunha de sua filha (o desenho foi uma borboleta que pendurei entre dois quadros no meu quarto. Vanessa sente muito orgulho em dizer que foi ela quem ensinou a Batata a desenhar borboletas e, como o meu quarto possui temática botânica, esse é um dos melhores presentes que já ganhei). Vanessa parece uma garota esperta com sorriso no canto da boca, lado esquerdo. Batata estava lá, envolvida em uma atividade artesanal, ao lado de outras crianças. Também conheci o marido e os pais da autora; e a mãe dela, uma fofa, afirmou me conhecer do Facebook. Tentei, mas não pude ficar muito tempo, pois estava extremamente cansada. No ônibus, voltando para casa, vi no celular a foto que tirei ao lado da Vanessa e apaguei porque me odiei: estava muito magra, mas agora comemoro meus 56kg que exibo com orgulho, uma conquista de dois anos de terapia e muita aceitação pós-trinta, amadurecimento, uns quatro jeans perdidos e a certeza de que nunca estive tão gostosa e com uma cabeça melhor que a dos vinte e poucos anos, apesar de tudo. E esse “tudo” abrange ser a pessoa dependente de tarja preta para viver minimamente com dignidade, menos ansiedade e melhor disposição, uma pessoa bem diferente da Nina de dezenove anos que “descobriu” Vanessa Barbara.
Outra coisa que mudou também é que leio cada vez menos. Três camadas de noite, o livro que recebi autografado da Vanessa, só pôde ser desfrutado no fim de 2024. As redes sociais estragaram meu sono, meu cérebro, minha saúde como um todo. Sabe o que também nos faz perder o sono? Um bebê. A existência de outra pessoa para cuidar no meio do caos de uma vida pessoal e no caos mundial de uma pandemia. São esses os temas do livro da Vanessa, lançado pela editora Fósforo.
Eu e Vanessa somos mulheres deprimidas, atraídas por biografias de pessoas deprimidas. Tivemos um amigo em comum, o querido tradutor Sergio Flaksman, que traduziu o livro A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia, de Janet Malcolm (um livro muito breve, de poucas páginas, e que recomendo demais para compreender mais um exemplo da dinâmica de relações abusivas). Curiosamente, quando minha mãe faleceu e tive que voltar para Salvador no intuito de enterrá-la, tirei da minha coleção três títulos e pus na mala de retorno para São Paulo. E foram eles: A mulher calada, O livro amarelo do terminal e Noturno indiano, do Antonio Tabucchi.
Em Três camadas de noite, Vanessa intercala vidas de escritores, mitologia grega e sua personagem em primeira pessoa narrando a convivência com Heitor, seu primeiro filho, um bebê. Entre a adaptação de seu sono irregular competindo contra a maternidade e o isolamento que a covid-19 exigiu, nossa heroína tenta escrever, manter uma rotina possível. Grandes momentos surgem com as dores e delícias de ter uma criança isolada em casa, como as palavras que Heitor inventa, todo um novo dicionário (me lembra o livro Dicionário de humor infantil, do Pedro Bloch, com tiradas sensacionais das crianças que frequentavam seu consultório). Eu adoraria focar no ponto principal da narrativa, mas cometi o erro de ler resenhas sobre e percebi que muitas pessoas já o fizeram, então, vou me concentrar no que penso ser meu ponto de proximidade com Vanessa, justamente a depressão.
Ela começa com Sylvia Plath: “o que me dá mais pena é que ela tentou”. Lembro de ter pensado o mesmo quando li Malcolm. Sylvia se matou em fevereiro de 1963 e, se ela tivesse aguentado mais alguns anos, teria visto possibilidades de futuro para mulheres da sua geração. E talvez por causa dela eu não me espante quando chego muito perto da morte e desisto, porque sempre penso no “e se”. E se Sylvia Plath tivesse vivido, teria adquirido o reconhecimento literário que almejava em vida? E não apenas essa assombração de ser julgada, muitas vezes, como superestimada depois da morte só por ter sido uma escritora que se matou?
Clarice Lispector e Franz Kafka também são esmiuçados por Vanessa, assim como Henry James (embora James tenha tido uma vida mais abastada que os outros citados). Sylvia, Clarice e Franz tiveram algo em comum, além da vida literária: encaravam a literatura como um trabalho de sustento, ou que pelo menos deveria fazê-lo. Mas, os transtornos mentais sempre foram uma sombra presente nesses escritores em específico. Levei Três camadas de noite para a terapia e comecei uma reflexão a partir do seguinte trecho, referente a saúde mental de Clarice Lispector:
“Nesse ano, o dr. Azulay sugeriu que suspendessem a terapia. Em uma entrevista posterior, ele admitiu: ‘Clarice me exauria mais que todos os meus clientes juntos. Os resultados eram mínimos. Eu estava muito cansado com ela e ela comigo’. Disse que a escritora tinha uma carga de ansiedade que poucas vezes viu na vida. ‘Viver era para ela, nessa medida, um tormento. Ela não se aguentava. E as pessoas também não aguentavam. Eu mesmo, como analista, não aguentei’, reconheceu.
Segundo o dr. Azulay, Lispector ingeria uma quantidade enorme de antidepressivos e tranquilizantes, mas, ainda assim, muitas vezes não dormia. Como ficou desesperada com a perspectiva de ser abandonada pelo psicanalista, ele passou a vê-la uma vez por semana, não como paciente, mas como amiga, e tentava ajudá-la da melhor maneira possível.”
Pergunto se me acontecerá o mesmo. Digo que estou em um casamento feliz com meu terapeuta, juntos há dois anos. Brigamos uma vez, nos entendemos na sessão seguinte. O melhor relacionamento que já tive, e essa também é a coisa mais triste já constatada. O quão sozinha alguém pode se sentir para ver no próprio terapeuta a única perspectiva de acolhimento? Se um dia me faltar isso, minha vida acaba?
O sono, para a protagonista de Três camadas de noite, é compreendido como uma espécie de privilégio quase que concedido por deuses, os deuses da compreensão. Para mim, é claro que a insônia agrava a depressão, e dormir tornou-se uma válvula de escape dessa realidade que não consigo nem desvendar, nem resolver.
“A minha depressão era como o clima: ninguém sabia se o inverno viria forte ou suave, se ia chover fininho ou cair uma tempestade. Apenas acontecia. Mas dava para se preparar um pouco. Tínhamos cinco guarda-chuvas em casa, incluindo um tão grande que quase precisava de um alvará da prefeitura para circular. Quando o tempo fechava e a previsão era de tormenta, eles me deixavam dormir bastante, tipo a tarde inteira, até que eu acordasse um pouco menos exausta.”
O livro me fez chorar em momentos inusitados, que podem se confundir com o “chorar de rir”, pelo tom humorístico. Mas não. Eu choro por coisas que sei que nunca vou viver, e isso tem a ver com ser exatamente quem eu sou e pelas minhas tomadas de decisões drásticas (talvez). Heitor, por exemplo, esperneando no meio da rua, constrangendo a mãe na frente da vizinhança, que reflete: “agora aparentemente meu filho chorava porque as lágrimas estavam molhadas demais. Respirei fundo. Lembrei que Dalai Lama, em tibetano, significa ‘aquele que nunca cuidou de uma criança de dois anos’”. Vanessa disse, para a Rádio Novelo Apresenta, que o trauma a tornou mais cínica e sarcástica. Eu não sei como o cinismo funciona, ainda me considero ingênua em muita coisa e por isso já permiti que me machucassem e fiquei em silêncio muitas vezes para não perder a ilusão de paz. Mas a literatura faz o seguinte conosco: às vezes, nos faz pensar nas melhores palavras para vencer uma briga que aconteceu anos atrás e da qual perdemos para o adversário, que pensou mais rápido ou foi mais forte. O sarcasmo tardio também se transforma em arte.
Ainda enxergo Vanessa como uma irmã mais velha, mentora, algo do tipo. E ela não precisa fazer nada além de ser exatamente quem é. Vanessa não me deve nada. Existindo, basta. Vivendo, publicando, e me deixando saber vez ou outra que está bem na medida do possível: é isso.
Encontre Três camadas de noite na livraria mais próxima de você. Sim, vá ate uma livraria e, se o livro não estiver disponível, encomende por ela. Além de escrever livros, Vanessa Barbara também está no Substack! Assine A Hortaliça aqui.
A mouthful of air, um filme de Amy Koppelman.
A vida acaba. Para muitas pessoas e cada vez mais, só é preciso decidir quando.
Assim como Vanessa Barbara, Julie Davis (Amanda Seyfried) também é escritora, mas especificamente de livros infantis. Em suas obras, ilustradas por ela mesma, Julie ensina crianças a enfrentarem seus medos. No entanto, mesmo em um casamento feliz e com um bebê no colo, ela tentou suicídio. Essa é a história de como a depressão é uma fera indomável que se propaga e toma conta de todo o ambiente, por mais iluminado que esteja, independente do tanto de amor envolvido. Assisti A mouthful of air muitas vezes ano passado, talvez porque ele lance a seguinte dúvida: se temos tudo, por qual motivo o abandono parece mais forte e a dor não cessa?
Ethan (Finn Wittrock), marido de Julie, sente medo de deixá-la sozinha em casa com o bebê. Julie chora no chão do banheiro depois de posicionar o espelho de um armário enquanto a criança brinca no quarto, podendo, assim, vigiá-la. Ao sair para confraternizar com a cunhada após meses se recuperando em casa, esconde as marcas nos pulsos com pulseiras e lenços. Ethan demonstra tanto carinho que Julie descobre esperar um segundo filho - é o momento de saírem do apartamento para um lar com mais espaço. E então, feridas abertas da infância de Julie são reviradas, tais como as cicatrizes traumáticas citadas por Vanessa durante sua participação no podcast; ao mesmo tempo em que Julie decide se afastar da medicação ao menos enquanto estiver grávida. O que, mais cedo ou mais tarde, se mostra uma péssima ideia.
A última cena de A mouthful of air trata-se de um off-screen, quando você não precisa realmente ver o que aconteceu para saber que aquilo aconteceu e essa, certamente, é uma das cenas mais significativas dentre os filmes que assisti, pois ficará para sempre gravada em minha memória.
A reflexão que esse filme provocou em mim é que algumas pessoas talvez não tenham salvação, mas tentar e não conseguir também não significa falhar. Eu quero a chance de dizer isso a quem me aprecia, por não saber o dia de amanhã, por me sentir fraca muitas vezes: sou uma suicida em potencial. Uma bomba-relógio tal como minha tia, mas em outra vertente. Já fui internada para não fazer o pior; perdi pessoas para o abismo; fiz o que pude para tirar da beirada quem nele esteve. Em duas ocasiões, não deu certo. Seria forte demais afirmar que não sinto culpa, mas sinto angústia. Quando alguém se vai dessa forma, a gente sempre pensa no que poderia ter feito para ajudar. A questão é que também imagino se serei a próxima.
Seu texto me fez lembrar de quando eu era mais novo, quando pensei bastante no suicídio e no quanto era bom poder sair deste mundo. Hoje não penso nisto com frequência, e me agarro noutras coisas pra seguir em frente. Agora uma parte do texto me fez pensar no quanto podemos ajudar e não ajudamos.
Boa tarde, Nina Galdina.
Este texto me faz refletir sobre as nuances de cada momento difícil que passei no passado sendo um amante da Deusa Depressão. Estou hoje melhor um pouco, mas muita coisa ainda permanece Dela, apesar de em minha vida externa eu estar seguindo bem neste momento. Não vou comentar sobre o caso da Vanessa Barbara, uma colega nossa aqui no Substack compreendeu de modo errado o que perguntei sobre o nesmo; só vou apontar que a Vida na escrita dela, nesses pequenos trechos citados, é uma das mais impactantes passagens que já li na minha vida. Eu vou seguir o Substack dela e passarei também a seguir o seu, me identifiquei com o que você aqui escreveu.