Tem um tipo de cinema que me atrai muito, onde estão os filmes sobre gênios. Gênios incompreendidos, especificamente. E se esse filme vem aliado a mania de perfeição, melhor ainda, é bem o meu tipo. Nessa seara, encontram-se (para citar alguns:) Cisne negro, do Aronofsky; Uma mente brilhante, de Howard; e meu favorito, Whiplash, do Chazelle.
Tár, dirigido por Todd Field e protagonizado por Cate Blanchett, vai nessa direção.
Já começa pelo fato de que Todd Field nunca errou artisticamente. Ele dirigiu apenas três filmes na vida e todos são ótimos. Isso mostra que a qualidade de trabalho importa mais do que a quantidade, o que faz com que o diretor tenha respeito no meio. Porém, em Tár, ele arriscou pensar todo o roteiro com Cate Blanchett interpretando Lydia Tár - e ela poderia simplesmente recusar o papel. O que, para a sorte de ambos e do público que tem o privilégio de assistir, não aconteceu.
É uma ficção tão realista que chega a ser palpável. Muita gente pensou, na época de lançamento do filme, que Lydia Tár existiu. Isso porque a obra já começa com uma extensa apresentação de sua biografia, deixando claro que o céu é o limite: tendo sido aluna de Leonard Bernstein, foi contemplada com o EGOT - forma com a qual são reconhecidos artistas que receberam os maiores prêmios do entretenimento (Emmy, Grammy, Oscar e Tony); e, quando o filme começa, ela é apenas a primeira mulher diretora musical da Filarmônica de Berlim. Tá bom para você?
Além de tudo isso, Lydia Tár é Cate Blanchett, uma mulher com 1,74 de altura que impõe respeito e inspira medo (parece até mais alta). Esse filme inteiro confirma o ditado “quer conhecer uma pessoa? Dê poder a ela”.
Lydia está prestes a lançar não apenas sua autobiografia, como também uma das sinfonias de Gustav Mahler a ser gravada para as plataformas digitais, o que deixa evidente tanto que ela já ultrapassou o auge da carreira como também põe em dúvida o que está por vir, o que mais falta. E quando uma ausência se confirma, alguns de nós se tornam passionais. Com Lydia, não é diferente. Ela é um monumento, mas também é humana.
Lydia é uma mulher assumidamente lésbica e casada com a spalla da orquestra na qual é regente. E ambas adotaram uma menina. Embora Sharon pareça a pessoa mais privilegiada na vida pessoal de Lydia, ela sofre com crises constantes de ansiedade e tenta se distanciar e perdoar as ações da companheira, talvez para proteger-se dos fantasmas que já tem e que são agravados pelo comportamento dela. Lydia é uma sedutora-manipuladora e cada mulher presente em sua vida é vitima de sua sedução. Temos vários eixos nessa história: além de Sharon como esposa, há Francesca como assistente pessoal de Lydia, eternamente aguardando uma promoção na carreira que nunca vem; enquanto isso, Krista é recusada e sabotada por Lydia, tendo sido uma espécie de figura anterior a Francesca - aquela musicista que chama a atenção da maestro e, a partir do momento em que cansa a mesma, é negligenciada com muito desrespeito e irresponsabilidade. Em nenhum momento conhecemos Krista - ela é uma sombra apagada na vida de Lydia, a mulher mais jovem e inconveniente tentando cercar a protagonista da história, que está longe de ser uma vítima. E o outro contraponto-eixo é Olga, nova violoncelista da orquestra, nova em tudo, inclusive na idade, o que atrai Lydia.
Ciente do poder que tem e certamente sem nada melhor para fazer, Lydia se diverte criando conflitos nas vidas de seus alunos. Determina Olga como solista em detrimento de outra violoncelista dedicada, competente, com mais tempo de casa e cheia de expectativas. No inicio do filme, confronta um aluno que não separa a arte do artista, o que molda o grande painel que é Lydia Tár: uma artista que será julgada em um dado momento, apesar de sua genialidade. Quando você assiste essa cena, concorda com ela, porque pessoas horríveis que fizeram e fazem coisas incríveis, significativas e memoráveis, estão por toda parte desde que a História começou a ser construída. Lydia não inventou a roda, nem será a última artista controversa. E, apesar das adversidades, ela não necessariamente tem que ser ignorada só porque não tem o menor trato com as pessoas.
Na verdade, o filme inteiro traz um mix de sensações que vão desde entender Lydia até odiá-la, passando até mesmo por perdoá-la. Às vezes, Lydia Tár é um espelho e você se enxerga nela.
Tár tem requintes de terror sofisticado: o que é assustador está nas sutilezas. Como alguém que tem transtorno de ansiedade e depressão e nunca deixa de mencionar isso, foi perceptível para mim que Lydia não se encontra em seu melhor estado mental: ela é capaz de ameaçar uma criança na escola da filha; assim como sente uma presença espiritual dentro da casa que não divide com a esposa, mas utiliza para ensaiar. O telespectador mais atento verá uma Lydia Tár vigiando a si mesma no canto da tela em algumas cenas, como se uma Lydia Tár do futuro estivesse visualizando as ações de seu próprio declínio no presente.
Tár é um filme envolvente e impecável, os adjetivos que posso atribuir a protagonista. Também é o filme que tem o tipo de gênio que gosto: o que atira cadeiras nos alunos ou, no caso de Lydia, dá um soco em seu substituto em plena apresentação com direito a plateia. Lydia é peculiar. E mesmo quando cai no ostracismo, Tár ainda é inesquecível.
Eu assisti o filme na época do lançamento e não me lembro agora quem fez uma denúncia contra a Lydia que fez ela decair na carreira, preciso rever o filme!