Fevereiro foi um mês de filmes que me despertaram sentimentos tristes em ocasião dos aniversários dos meus pais, que já não estão mais aqui. Então, para compensar, hoje me rendi a um “filme conforto” que na verdade é obra-prima, joia do cinema dos anos 2000.
Mas a ideia era outra: falar sobre Stanley Tucci e alguns filmes que ele estrelou, mostrando toda a sua versatilidade e competência. Começou quando meu amigo Alexey sugeriu Supernova, protagonizado por Tucci e Colin Firth como um casal gay vivendo o drama do personagem de Tucci sofrer de demência. Depois fui para Julie & Julia, comédia sobre uma cozinheira amadora que decide escrever um blog testando todas as receitas de um livro específico da lendária Julia Child, vivida por Meryl Streep; Tucci interpreta seu marido nesse enredo que mescla a jovem cozinheira de Amy Adams ascendendo na internet em paralelo com Julia Child encontrando seu caminho e criando a própria fama décadas antes. Apesar de ter sido sugerido pela Malu e de eu ter me identificado com o sentimento dessas mulheres que duvidavam de todo seu potencial, que começavam projetos e não terminavam, não achei esse um bom filme. A Julia Child de Meryl me irritou por parecer caricata, Amy Adams é superestimada (apenas uma atriz que respira pela boca e sim, já assisti A Chegada) e, no fim das contas, só gostei de Stanley; fazendo o papel do marido paciente e incentivador, cuja dúvida sobre sua heterossexualidade é levantada. Entre esses dois filmes vi Um lugar do paraíso: suspense com fantasia sobre uma garota assassinada pelo serial killer do Stanley Tucci; e aqui, senhoras e senhores, o homem está brilhante, convincente, perfeito. Infelizmente o filme é ruim (remete demais a Amor além da vida, aquele de 1998 com Robin Williams que todo mundo assistiu) e só vale porque ele está segurando as pontas junto com Saiorse Ronan (para mim, uma das melhores atrizes de sua geração).
E daí que meu último passo era alcançar o filme que mais destacou Stanley Tucci e que revi milhões de vezes: O diabo veste Prada. Mas, antes de falar dele, é necessário abordar o filme.
“Milhões de garotas matariam por esse emprego”.
A frase acima caberia em um reality show que misturaria Jogos vorazes com o LinkedIn, correto? Mas ela é o mantra equivocado mais repetido em metade do filme. Andrea Sachs (Anne Hathaway) é uma jovem recém-saída da faculdade, onde se formou com destaque. Ela também é recém-chegada na cidade grande, Nova York, onde procura pelo primeiro emprego em sua área, jornalismo. A única entrevista que Andrea consegue é na Runway, a revista de moda mais importante do mundo, que divulga grandes nomes, tendências e atemporalidades desse meio - qualquer semelhança com a Vogue America não é mera coincidência, já que a história de O diabo veste Prada é baseada em um livro baseado em fatos reais.
A vaga que Andrea disputa é para segunda assistente de Miranda Priestly (Meryl Streep, sim, olha ela aqui de novo), editora-chefe da revista, hiper dedicada à vida profissional e exigente ao ponto do absurdo com quem quer que trabalhe com ela.
O diabo veste Prada tem um dos melhores inícios de filme já feitos. Aquele tipo de começo que dá o tom do que está por vir. Mas eu diria que são dois começos: o primeiro é quando sobem os créditos iniciais e Andrea, “Andy”, se arruma para a entrevista de emprego; junto com outras mulheres que acordam em suas casas, apartamentos ou quitinetes; escolhem a lingerie a dedo, tal como a roupa que vão usar para impressionar, acessórios, maquiagem e perfume. Andy não faz nada disso, porque ela é uma mulher que pensa que só o intelecto e um bom currículo bastam (no máximo aplica um hidratante labial com cor e vai). Andy pega o metrô e, levemente descabelada, chega ao prédio da editora.
O segundo começo é quando informam para a primeira assistente, Emily (Emily Blunt) que Miranda está chegando minutos adiantada, o que provoca um caos no escritório: tem que servir a água da chefe, dispor as revistas na mesa, calçar os saltos, passar batom, esconder a bagunça. Miranda, com seu visual icônico de quem sabe estar impecável (cabelo curto e grisalho, casaco, bolsa e óculos escuros), já no saguão e com um olhar, faz com que uma mulher peça desculpas e deixe o elevador livre para ela. Ao ser recebida por Emily, lhe entrega a bolsa e o casaco, profere uma série de ordens difíceis de acompanhar e pergunta: “quem é ela?”, apontando para Andy.
Andy é entrevistada por Miranda e mal completa suas frases quando é dispensada, não sem antes ter provado que não lê a revista e nunca tinha ouvido falar de Miranda Priestly ate então. Mas é chamada de volta e começa em seu novo emprego.
No fim do dia, os amigos e namorado de Andy se impressionam. Como assim ela vai trabalhar numa revista de moda? Parece o mais distante possível da pessoa que eles conhecem. Mas as contas precisam ser pagas, a principal delas é o aluguel. E, pelo que disseram, trabalhar para Miranda Priestly abre muitas portas.
Começa então o que chamo de “filme de RH”: filmes que os recursos humanos das empresas a-do-ram apresentar em dinâmicas para falar sobre resiliência quando, na verdade, eles querem que você ajoelhe no milho e aceite qualquer ordem que vá além do trabalho proposto, sem reclamar e dizendo “amém”. Talvez O diabo veste Prada, se pensarmos nas hierarquias de trabalho, não funcione para a geração Z. Quem é millennial passou a vida acreditando que, se você se esforçar muito, ficará rico. O gen-Z não é atraído por essa ilusão. Para a geração posterior a minha, mais trabalho subordinado significa menos qualidade de vida.
Nos Estados Unidos não existe CLT. Logo Andy percebe que está lidando com uma chefe abusiva e uma colega de trabalho que torce por sua derrota. Às vezes esquecemos que, numa empresa, o tempo inteiro somos observados. Na primeira mancada de Andy, ela recebe um dos discursos mais lembrados do cinema: educativo e ao mesmo tempo humilhante, Miranda dá uma pequena aula de história da moda, já que Andy insiste em ser a mulher que “não precisa de tudo isso, porque não ficará nesse emprego para sempre”, o que também é uma forma de arrogância. Ela volta para casa reclamando que as pessoas do escritório se comportam como se estivessem curando um câncer. Trabalho no varejo de moda há mais de dez anos lidando diretamente com o consumidor final e posso afirmar que é isso aí mesmo, Andy: a moda cria um senso de urgência que obedece a agenda capitalista. Tem a parte boa e bonita, que é pensar em moda enquanto arte e não apenas funcionalidade, mas em muitos momentos isso sequer é lembrado. Meu trabalho, por exemplo, é baseado em metas. Para qualquer empresa, sou vista a partir dos números que entrego e não dos vínculos que crio com clientes e faz com que elas retornem. O trabalho de Andy consiste em satisfazer todas as necessidades e caprichos de uma editora-chefe sempre disposta a testar sua resistência. Filme de RH.
Andy é desafiada por cada deslize que comete. Se ela vai até a casa de Miranda para fazer uma entrega e flagra uma discussão íntima entre a chefe e seu marido, na manhã seguinte precisará rebolar para conseguir o manuscrito do próximo livro da saga Harry Potter. Na noite de aniversário do namorado, ela é “convidada” de última hora para o Met Gala. No meio de um jantar com o próprio pai, Miranda solicita um vôo para ver as filhas em um recital, mas chove torrencialmente, há risco de furacão e todos os vôos foram cancelados. Assim, nossa heroína vai perdendo sua vida social e descanso sagrado.
Cinderela em Paris.
Funny face é um musical de 1957 protagonizado por Audrey Hepburn e Fred Astaire. A história de amor mais inverossímil do cinema. E, também, a mais adorável: Jo (Hepburn) é uma jovem livreira que, ao ser descoberta por Dick (Astaire), fotógrafo de uma revista de moda, torna-se sua modelo ideal e faz a carreira em Paris. No final, a mocinha fica com o rapaz e os dois vivem felizes para sempre. Em O diabo veste Prada, Andy não tem um príncipe encantado, mas sim uma fada madrinha: Stanley Tucci como Nigel. O memorável Nigel.
Miranda pode até ter assistentes, mas Nigel é seu braço direito: membro do departamento de arte há dezoito anos na empresa, as melhores ideias são dele, que tem em Miranda uma mentora. Quando Andy o procura para desabafar, é dele quem recebe o segundo “discurso chacoalhão” sobre seu lugar naquele ambiente profissional: “Andy, você não está tentando, está se lamentando. A Runway é mais do que uma revista. Ela é um arauto para… sei lá, um garoto em Long Island com seis irmãos que finge ir ao futebol, mas frequenta aulas de costura durante a tarde e lê a Runway de noite, embaixo da coberta e com uma lanterna. Dessa revista, saíram ícones, gênios, e você nem liga. E ainda quer que a Miranda ponha uma estrelinha na sua testa? Acorda, querida”.
E então, Nigel leva Andy para o closet da revista e escolhe tudo que ela deve vestir: sapatos, bolsas, até mesmo um poncho. “E ainda temos que ir ao salão de beleza, só Deus sabe quanto tempo vai demorar”, ele diz. Pode não parecer, mas Nigel é gentil. Talvez seja a única pessoa generosa daquele escritório que é um ninho de cobras como quase todo escritório, onde um fala mal do outro, conspirando e puxando tapetes. Eu passei por isso, você também. Mas quantos de nós teve um Nigel para, no seu primeiro dia de emprego, adivinhar que você calça 38 e levar saltos para que se apresente diante da superior? Pois o Nigel fez isso sem ninguém pedir. Chamo esse tipo de atitude de sensibilidade, cada vez mais rara, poucos cultivam e compartilham. Se é difícil imaginar O diabo veste Prada sem Meryl Streep e Anne Hathaway em papéis principais, considero impossível conceber um Nigel que não seja Stanley Tucci. Agora que vem sendo anunciada uma continuação, o nome que mais torci do elenco original foi o dele. Uma versão de O diabo veste Prada só com ele já seria um grande filme.
Curiosidade: Stanley Tucci é um homem heterossexual, que frequentemente interpreta homossexuais de forma extraordinariamente convincente. A surpresa é que ele seja hétero. Tornou-se amigo de Emily Blunt e casou, anos depois, com a irmã da atriz, com quem tem dois filhos. Antes desse casamento, Stanley teve outro que durou anos até enfrentar o câncer da esposa e ficar viúvo. Quando conheceu Felicity Blunt, teve dúvidas, por ser mais de vinte anos mais velho e não saber se acreditaria novamente no amor após a viuvez. Mas está funcionando.
Se você souber de algum filme que tenha Stanley Tucci no elenco, não hesite em assistir, apenas vá ao cinema ou dê play no streaming.
O verdadeiro vilão de O diabo veste Prada.
Nos últimos anos, uma discussão tornou-se recorrente entre fãs de O diabo veste Prada, que apontam Nate (Adrian Grenier), namorado de Andy, como “o verdadeiro vilão do filme”, ao contrário de Miranda. Pois discordo, acho essa afirmação um surto coletivo e vou dizer por quê.
Ainda sou jovem, mas não nasci ontem. Trabalho com moda desde 2012 e passei por todo tipo de chefe: bonzinhos trouxas, mimados incompetentes, tiranos implacáveis e mentores inesquecíveis. O último tipo é raro e o penúltimo, infelizmente, comum. Pessoas em cargos superiores podem adquirir a síndrome do pequeno poder e agir com capricho exigindo tarefas que não são da alçada do funcionário. Embora O diabo veste Prada humanize Miranda em alguns momentos nos quais ela mostra sua vulnerabilidade; e também levante o questionamento de que, se ela fosse homem, não seria julgada como difícil e megera; na maior parte do tempo ela é uma cretina que sente prazer em infernizar a vida alheia. Ninguém trabalha bem assim. Você passa a maior parte do tempo no seu emprego, de 6 a 8 horas por dia. Ainda tem o tempo de deslocamento, ida e volta. Se mora em uma cidade como São Paulo (meu caso), esse tempo pode levar de duas horas ao infinito, dependendo do trânsito e da distância (no meu exemplo, levo quarenta minutos para chegar no serviço de ônibus e considere isso como “morar perto”. Na minha cidade natal, eram 20 minutos no máximo com trânsito e quase meia hora caminhando). Imagine você chegar suada e esbaforida no seu emprego para não ter o mínimo de paz? Desanima, mas o problema nem é esse. Se eu tivesse uma chefe como Miranda Priestly, já teria dado entrada no INSS com a minha saúde mental, que já não é boa, deteriorada. O burnout taí: cada vez mais frequente e ao alcance de todos.
Aguentar chefes abusivos com ordens absurdas não é aceitável. Você não tem que provar resiliência diante da filhadaputagem alheia, só cumprir suas funções de maneira competente e dentro da legalidade. Por isso amo o fato de viver em um país no qual, apesar de tudo, há formas de denunciar e punir as cosplays de Miranda Priestly da vida - já passei por alguns projetinhos de Miranda. Concordo que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, mas limites precisam ser estabelecidos para que se crie um ambiente de trabalho que seja ao menos respeitoso, na impossibilidade de ser saudável. Gente, isso não é pedir muito; na verdade, é o mínimo! A Miranda Priestley do seu trabalho só quer o bem de uma pessoa, ela mesma. Em bom português: nenhum CNPJ vale seu CPF.
Nate, o companheiro de Andy, não é o cara que incentiva que a namorada largue o emprego à toa, com um desejo perverso e secreto de que ela nunca evolua profissionalmente. Ele também faz parte da classe trabalhadora: trabalha em uma cozinha. Não sei se quem assiste tem noção, mas trabalhar em restaurante é muito mais cansativo e estressante do que trabalhar em uma revista de moda - são horas de trabalho braçal. E me parece corretíssimo quando Nate afirma que “eu não tive escolha” tornou-se a justificativa de Andy para tudo. É a frase mais dita na segunda metade do filme, pois é ele quem assiste a companheira tornando-se, não alguém que mataria para estar naquele emprego, mas sim quem está se matando por ele, causando tiroteio em todas as relações que construiu.
Pessoalmente falando, já alcancei um nível espiritual em que faço o que posso e isso é tudo. Fruto de uma terapia que luto horrores para pagar, através do esforço do meu trabalho. Pensar assim me coloca na pindaíba todo mês? Com certeza. Enfrento uma instabilidade financeira fodida desde o fim da pandemia (por isso, se você puder, pague por essa newsletter), mas todos os dias mato um leão interno que me impede de surtar, apesar de toda a pressão e condição para que o pior me aconteça. Gosto muito de fazer o que está ao meu alcance e com excelência. Mas, ao impossível, não me proponho. E cultivo os amores que tenho. São poucos, mas desses gosto muito.
O diabo veste Prada está disponível no catalogo da Disney+ para ser visto e revisto.
Adorei. Supernova filmaço, e curti seu olhar sobre O Diabo Veste Prada. :-) Não sabia do Tucci com a irmã da Emily, adorei saber. Beijo!
Muito bom!