Um dos meus grandes desprazeres na vida é ter que explicar um filme para quem assistiu e, por falta de atenção (às vezes por mau caratismo mesmo), dissemina sua interpretação torpe sobre algo que não está lá, uma coisa que é explicada durante a obra, mas a pessoa enxerga como ela quer. O exemplo recente está no que aconteceu com Pobres criaturas, obra-prima reduzida a “um filme que enaltece pedofilia”, como insiste mais gente do que eu gostaria de imaginar. É engraçado porque existe uma cena, UMA CENA ESPECÍFICA em Pobres criaturas que mostra que o filme se defende dessa acusação de forma muito clara: quando Max, assistente de Godwin, lê em voz alta suas anotações sobre Bella, e constata que ela aprende novas palavras a cada dia, seu cabelo cresce mais centímetros que o normal e sua coordenação motora está melhorando. Bella Baxter amadurece cada vez que acorda, ela não é mais criança antes da metade do filme e, se as cenas de sexo incomodam, sinto informar, mas sexo faz parte da vida e através dessa atividade saudável podemos descobrir o mundo. Esse é o caminho que a personagem trilha. No enredo de Pobres criaturas, Bella é uma mulher grávida que comete suicídio, mas é resgatada por um cientista que ressuscita seu corpo com o cérebro de seu bebê. Bizarro? Macabro? Sim, mas tem sua beleza e reflexão. Lanthimos está longe de ser um diretor que sente prazer em promover violência gratuita com personagens femininas sendo abusadas sem que isso cause debates válidos sobre a origem do abuso e as consequências para a vítima. E Kinds of kindness, seu novo filme, é a prova disso.
Com certeza Pobres criaturas é um dos filmes recentes mais singulares que você assistiu, mas ele também é diferente de todos os filmes de Yorgos Lanthimos, um cineasta já marcado por ser nada convencional. O que ele está acostumado a fazer é mais próximo de seu novo filme, em que três curtas se entrelaçam através de um personagem em comum, que atende pela sigla de R. M. F. Essas histórias são protagonizadas por Jesse Plemons e Emma Stone; e co-estreladas por Willem Dafoe, Hong Chau, Margaret Qualley, Mamoudou Athie e outros. Todas as histórias de Kinds of kindness tratam do absurdo enquanto probabilidade, algo frequente nos filmes de Lanthimos, quando pessoas são colocadas em situações-limite. Mas aqui ele volta a abordar relações de poder, tema que também foi base para O sacrifício do cervo sagrado e A favorita. Então, esse é “o Lanthimos do velho testamento”, fazendo com que Pobres criaturas seja encarado como fora da curva mesmo.
Kinds of kindness ou é uma antologia e seus contos são apresentados de forma não-linear, uma escolha narrativa interessante. E como esse filme é sobre “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, o que dá o tom em sua abertura é a música “Sweet dreams (are made of this), que diz: “todo mundo está procurando alguma coisa / alguns deles querem te usar / alguns querem ser usados por você / alguns querem abusar de você / e alguns querem ser abusados por você”.
A primeira história que aparece é “A morte de R.M.F”, onde alguns deles querem te usar. Robert (Plemons) tem a vida dos sonhos graças ao ricaço e influente Raymond (Dafoe, brincando de Deus novamente, após Pobres criaturas): emprego estável, bela casa, linda esposa e carro do ano. Recebe frequentes presentes de Raymond, como por exemplo um capacete utilizado por Ayrton Senna, item de colecionador. Manter tamanho status tem seu preço, e Robert precisa seguir as ordens de Raymond, desde o que vai comer no café da manhã até o que vai ler antes de dormir, passando a dia e horário em que deve transar com a esposa. O ponto de conflito aparece quando Robert recebe uma ordem inusitada que não consegue acatar: provocar a morte de um homem através de um acidente de trânsito. Ao dizer “não” pela primeira vez, começa o desmoronamento de sua vida: a esposa o abandona, ele perde o emprego e não consegue outro, tenta o perdão de Raymond e fracassa miseravelmente. Robert começa a perseguir Raymond quando nota que ele tem uma nova protegida, Rita (Stone). Então, muda sua estratégia aproximando-se dela. Marca um encontro, mas a moça não aparece. O motivo? Ela sofreu um acidente de carro após atropelar um homem, e está no hospital.
Em “R.M.F. está voando”, alguns querem ser usados por você. Plemons é Daniel; um policial cuja esposa, Liz (Stone), está desaparecida. Liz é pesquisadora marinha, saiu a trabalho num barco e não voltou mais. O acontecimento afeta a vida de Daniel, mas ele tem esperança de reencontrá-la. Quando ela enfim é resgatada e volta para casa, Daniel percebe que talvez aquela mulher não seja sua esposa. Liz comporta-se de maneira estranha, o gato não lhe reconhece e seus sapatos não cabem mais em seus pés. Tentando alertar todos ao seu redor, sem sucesso, Daniel sofre um episódio de surto no trabalho e é afastado. Em casa, sob cuidados psiquiátricos e desconfiado de Liz, não consegue se alimentar da comida que ela faz e começar a se dizer faminto de outras coisas, pedindo-lhe favores impossíveis como, por exemplo, um dos dedos da sua mão. Ele precisa saber até onde ela é capaz de seguir com sua farsa.
Alguns querem te abusar e ser abusados por você, como mostra a última história: “R. M. F. come um sanduíche”. Emily (Stone) e Andrew (Plemons) procuram uma mulher muito específica: ela teve a perda de sua irmã gêmea no passado e tem poderes curativos de trazer os mortos de volta à vida, mas ainda não sabe disso. Eles recebem essa missão profética de Omi (Dafoe), líder de uma seita que visa purificar o mundo através de rituais religiosos e sexuais. Acontece que Emily, até então dona de casa, abandonou marido e filha pequena para viver essa loucura. Ela visita a casa da família em segredo, quando ambos não estão. Porém, um dia, é pega no flagra e convidada pelo marido a jantar com eles. Emily cede e cai numa armadilha que coloca sua missão em risco.
Em todas as narrativas de Kinds of kindness, mulheres são submissas e sofrem violência, seja ela escancarada ou não. Não surpreende que Raymond, vivido por Dafoe na primeira história, tenha como companheira a personagem Vivian, uma Margaret Qualley de 29 anos, contra os 69 de Dafoe. Ela aparece sempre com uma camisola de seda roxa, e essa é a cor predominante do filme, nas roupas dos personagens. Roxo já foi considerada uma cor nobre, aqui talvez surja como a cor adequada para quem é fiel a Raymond e, tratando de fidelidade, na última história é a cor da camisa e do carro de Emma Stone, participante de uma seita liderada por um personagem que também é de Dafoe. Tanto o segundo quanto o terceiro conto apresentam a violência de forma mais explícita, encarando o matrimônio como uma espécie de prisão que exige provas de amor ou razões para pertencer.
Os personagens de Kinds of kindness, quando oprimidos, sonham muito. Externando seus sonhos, parecem estar numa sessão de terapia. São os únicos momentos em que se apresentam esperançosos, como se tivessem a chave que mudará seus destinos. Mesmo que não seja um filme fácil, difícil mesmo é abandoná-lo em pensamento, pois fica martelando na cabeça por vários dias. Kinds of kindness, com esse título que é pura ironia (“tipos de gentileza”, na tradução, e nenhuma gentileza honesta nas ações dos personagens), tem o humor refinado com quebra de expectativa típicos de Lanthimos e não desaponta ao entregar “schadenfreude”. Todos os atores são competentes nessa obra, mas é belíssimo ver o quanto dá certo o casamento artístico entre Emma Stone e Yorgos Lanthimos, pois Kinds of kindness é sua terceira parceria em longa-metragem e já está na agenda de ambos um quarto filme.