Para a primeira pessoa que me levou ao cinema: minha mãe.
Fui uma criança que conheceu o mundo através da literatura: a biblioteca era perto de casa; o governo disponibilizava um programa no qual escolas de ensino primário e fundamental distribuíam livros para seus estudantes, geralmente clássicos adaptados para a linguagem infantil; minha mãe me levava para a bienal quando podia (era muito distante de casa e muito custoso no geral) e frequentávamos um sebo no centro da cidade, mais especificamente na Rua Chile. Escrevo isso na véspera do que seria seu aniversário de 56 anos.
Mas fui ao cinema, pela primeira vez, aos dez anos de idade. Os cinemas de rua já eram resistentes, não tanto quanto hoje, tampouco tão charmosos. Davam seus últimos suspiros, abrindo caminho para salões evangélicos. A cultura pouco a pouco cedendo à ignorância, começando por seus espaços físicos. Antes disso, cinema era o que a televisão mostrava e eu dependia daquela programação. Depois, ler um livro nunca mais foi uma experiência diferente de fechar os olhos e imaginar como seria o filme, caso ele fosse adaptado. Até hoje, sei que um livro é muito bom quando penso em sua adaptação cinematográfica. Imagino que eu mesma faria o roteiro, mas quem seria o diretor? E a atriz principal? Minha parte favorita tem tudo a ver com o elenco. E se eu fosse mais longe, escolheria um vestido para a premiação na qual eu seria indicada. Foi assim que adaptei, na minha cabeça, Ada ou ardor de Vladimir Nabokov; Noturno indiano de Antonio Tabucchi; e Blecaute de Marcelo Rubens Paiva.
O primeiro filme que fez com que eu me apaixonasse pela arte de contar histórias foi A princesinha, uma adaptação homônima do livro de Frances Hodgson Burnett, só que dirigido por Alfonso Cuarón. Ninguém lembra que Cuarón realizou essa obra em 1995, que passava uma vez por ano na Sessão da tarde, e acontece que ele é muito bom mesmo em levar para o cinema histórias infantis sem que elas fiquem inocentes demais. É dele o melhor filme da franquia Harry Potter, O prisioneiro de Azkaban, onde apresenta os assustadores dementadores - quem sofre de paralisia do sono sabe. Em A princesinha, Sarah Crewe (Liesel Matthews) é uma menina inglesa que vivia na Índia, mas passa a morar em um internato em Londres quando seu pai vai para a guerra. É com muita imaginação que ela tenta se adaptar as novas regras desse lugar hostil, fazendo amizades e repassando as histórias que seu pai lhe contava, como uma forma de ficar próxima dele. Um dia, porém, Sarah recebe a notícia do falecimento de seu pai. Sem ter para onde ir, passa a ser uma das crianças órfãs exploradas no internato, tratada como empregada e impedida de estudar, até que uma movimentação na casa vizinha chama sua atenção. Todas as minhas partes favoritas nesse filme se referem a Sarah contando histórias. De modo que não me surpreendeu quando lembrei de A princesinha enquanto assistia Dublê de anjo, menos ainda que eu também tenha gostado tanto desse filme.
O ano é 1920 (parece que a cada década, inclusive, o cinema nos brinda com algum filme sobre como era fazer filmes nessa época, sobretudo a transição do cinema mudo para o cinema falado - O artista em 2011, Babilônia em 2022). Roy Walker (Lee Pace) não é uma estrela de cinema, mas é um dublê que, após quebrar uma perna enquanto filmava a cena em que pulava de uma ponte, vai parar no hospital. Alexandria (a carismática Catinca Untaru) tem cinco anos de idade e está internada nesse mesmo hospital, depois de cair de uma árvore enquanto colhia laranjas no pomar em que a família trabalhava. O titulo original desse filme é The fall, mas Dublê de anjo soa melhor para mim.
Alexandria olha pela janela do seu quarto e vê que a enfermeira Evelyn se aproxima, então joga para ela uma mensagem escrita em um papel. Mas o vento faz o papel voar longe, a enfermeira não consegue alcançá-lo. Quando Alexandria desce as escadas, com seu braço enfaixado e uma caixa de madeira que ela leva para cima e para baixo apoiada nele, encontra sua mensagem nas mãos de um estranho deitado em uma cama do hospital. Aquele é Roy. “Você é Alexandria?”, ele pergunta. O nome da menina é a assinatura da mensagem. Ela não está interessada em conversa, de modo que pega sua carta e corre para a porta. Mas Roy começa a contar para ela uma das aventuras de Alexandre, o Grande. Porque alguém que vive de cinema, certamente sabe contar boas histórias; porque Alexandria, como toda criança, é curiosa e precisa ser entretida; porque Roy não pode fazer muito paralisado em uma cama de hospital.
Quatro anos e vinte e oito países, porque Tarsem Singh, o diretor, só queria locações reais, nada de computação gráfica. A estética de Dublê de anjo é tão ambiciosa quanto comovente, deslumbrante e feita para comer com os olhos. Pois a principal história contada por Roy nos é apresentada conforme a imaginação de Alexandria. Cinco heróis de personalidades e habilidades diversas (sendo Charles Darwin um deles!), vitimas de um mesmo rei tirano, se unem para confrontar o inimigo, enfrentando exércitos e viajando por lugares exóticos e fantásticos. Cada personagem é alguém do convívio de Alexandria: o padre que frequenta o hospital, um entregador de gelo, o farmacêutico, a enfermeira Evelyn e até o próprio Roy fazem parte desse épico que Roy compartilha com Alexandria dia após dia, em partes, tal como Sheherazade.
Porém, se Sheherazade contava histórias ao rei para sobreviver, Roy o faz com o sentido oposto: seu objetivo é manipular Alexandria, que pode andar até a farmácia, e roubar para ele morfina suficiente para que cometa suicídio. Quanto mais pílulas ela conseguir, mais histórias ele promete contar. No entanto, uma terceira queda põe fim a essa dinâmica.
1966, deserto do Atacama, Chile. Em uma cidade mineira minúscula, María Margarita Castillo (Sara Becker) vive com sua família. Seu pai trabalha na mina, a mãe é uma dona de casa que sonhava ser artista, e María é a mais nova dos quatro filhos. A diversão da família é ir, aos domingos, para o único cinema da cidade. Um lugar que não faz distinção de classe social, diferente de todos os outros dias e locais. Do homem mais simples ao dono da mineradora, o Sr. Nansen (Daniel Brühl, sempre um prazer assisti-lo), todos são bem-vindos ao cinema.
María Margarita é a mais atenta aos filmes. O que a torna, também, uma menina esperta e observadora. É ela quem primeiro percebe os problemas entre os pais, mesmo antes do pai sofrer um acidente que o obriga a se aposentar e o condena a uma cadeira de rodas. Com cada vez menos dinheiro para sobreviver, a família Castillo já não pode ir ao cinema como antes. Pensando no que fazer, o pai propõe o seguinte: o filho mais velho irá ao cinema no domingo; quando voltar, vai contar o filme inteiro para os pais e os irmãos; o garoto faz isso, mas ele é gago, e não consegue narrar o filme de forma exata. No domingo seguinte, vai o segundo mais velho; mas é um rapaz mulherengo que fala muito palavrão, não presta atenção em Bonequinha de luxo e não é capaz de repassar a história. No outro domingo, o terceiro filho volta para casa com detalhes demasiados e sem importância sobre como funcionam as coisas, pois o interesse dele sempre esteve nisso. Na vez de María Margarita, no entanto, tudo é diferente: ela fala do filme como se tivesse nascido para fazer aquilo, e é tão bom escutá-la quanto ir ao cinema. Com a habilidade ímpar da caçula, a família Castillo passa a cobrar ingresso para que a cidade conheça os filmes a partir dela, dado que sua fama se espalhou.
Lone Scherfig é uma cineasta dinamarquesa da qual gosto bastante, sendo Educação um dos meus filmes favoritos dela. A contadora de filmes é adaptado de um livro de Hernán Rivera Letelier que li anos atrás, uma obra muito breve e com o mesmo título. Lone foi além do livro, trazendo a influência de Pinochet na pequena cidade desértica depois que a protagonista torna-se adulta e a televisão chega aos lares; enquanto o cinema aos poucos é abandonado, até se transformar na sombra do que foi um dia. A transição de María Margarita criança para jovem e finalmente mulher, acompanha seus sentimentos e traumas: trata-se de uma personagem que lida com perdas e conta com o cinema e a imaginação para seguir em frente. Isso faz com que o filme se estenda além da conta, quase se arrastando para mostrar que ela é a última sobrevivente de uma cidade tão pequena quanto prometia ser próspera.
E cinema funciona igualmente para mim, como algo que vou amando tanto quanto empurrando com a barriga para sobreviver. O audiovisual transformou a minha vida em esperança com pequenas metas. “Se eu for embora agora, não verei a segunda parte de Cem anos de solidão”, por exemplo, é o objetivo recente. Fiz uma lista das cinco melhores coisas da vida, e cinema está em terceiro lugar, abaixo de sexo e comida mediterrânea. Posso viver sem livros, mas não sem os filmes. Tornou-se tão importante quanto a literatura que me moldou e espero nunca ficar cega.
Dublê de anjo está disponível na plataforma Mubi com grande destaque. A contadora de filmes pode ser alugado dentro da Amazon Prime Video.
Quantas referencias maravilhosas!!! Adorei o texto! Eu adorei The fall, fotografia impecável!