"Brinquedo", quarto episódio da sétima temporada de Black mirror
A tecnologia certa nas mãos da pessoa errada.
Muita gente não gosta do Harari (Yuval Noah,) e, pela segunda vez na vida, ganhei o mesmo livro dele (Sapiens, uma breve história da humanidade). Encarei como sinal de que não deveria ignorar, mas sim dar uma chance, Li e gostei. Gostei porque sou leiga, mas durante a leitura é notável que, se eu entendesse bem sobre qualquer assunto que ele aborda, consideraria sua escrita falha.
Na página 418 da nona reimpressão, começa o capítulo “O fim do homo sapiens”, que considerei como o mais interessante do livro. Nele, Harari afirma que já somos, de certa forma, ciborgues — usamos óculos, marca-passo e órteses, por exemplo. Em outro momento, ele cita a profecia de Frankenstein, propondo o questionamento: criaremos um ser superior ou um monstro? Existirá, um dia, alguém mais forte do que o homo sapiens. Forte em todos os sentidos, inclusive na inteligência. E esse alguém dará um jeito de reproduzir, nos aniquilar e nos substituir — conforme fizemos e a isso damos o nome de evolução.
No conto “A segunda variedade”, de Philip K. Dick, um dos mestres da ficção científica (suas histórias inspiraram filmes e séries conhecidíssimos); um dos últimos seres humanos na Terra, devastada por uma guerra de russos contra norte-americanos e um armamento tecnológico inigualável, com robôs que adquiriram consciência própria já capazes de criarem variações de si no meio do grande deserto que o planeta se tornou; esse humano, major Hendricks, está ciente da primeira e da terceira variedade de robôs que destruíram tanto a natureza quanto a humanidade, mas não percebe que foi seduzido pela segunda variedade até então desconhecida, alguém que parecia estar do seu lado, mas se revela inimiga — uma mulher, obviamente. Um robô em forma de mulher, Eva tirando Adão de seu paraíso desolado, matando-o no fim do conto e viajando rumo a colônia de humanos sobreviventes próxima da nossa lua, para dizimar o restante da população; não sem antes atacar também uma de suas variações, o que faz Hendricks concluir, antes de morrer, que os robôs já estão iguais aos humanos — matando uns aos outros.
Gosto de pensar que o episódio “Brinquedo”, quarto da sétima temporada de Black mirror, é uma antecipação do “fim da aventura humana na Terra” que desenlaça em “A segunda variedade”, embora o conto de K. Dick seja uma metáfora evidente para guerras nucleares; e Charlie Brooker tenha apenas pensado em Tamagotchi, bichinhos virtuais famosos nos anos 90 dispostos em aparelhos que cabiam na palma da mão e que nós, crianças dessa época, carregávamos para qualquer lugar. O objetivo era alimentar, banhar, brincar e fazer dormir seu Tamagotchi. Caso contrário, ele morria.
Fui uma criança que nunca soube cuidar de Tamagotchi e me tornei uma adulta que não sabe cuidar de planta — joguei dois cactos no lixo por incapacidade mesmo. Quando pequena, meus Tamagotchis tornavam-se “anjos” assustadores, com asas e subindo ao céu expressando dor. Eu me sentia culpada, mas não sabia que dava para reiniciar o aparelho, então joguei todos eles no telhado da casa dos meus pais, que hoje é um cemitério de Tamagotchis; assim como o solo do quintal já foi um cemitério de moedas antigas até do tempo do Brasil-colônia que, de vez em quando, na minha infância, costumava encontrar.
A história de “Brinquedo” é a seguinte:
O ano é 2034 e Cameron Walker (Peter Capaldi) entra em uma loja de bebidas e tenta furtar uma garrafa. O atendente flagra esse momento, trava a porta e chama a polícia. Cameron aguarda tranquilamente. Quando dois agentes chegam, descobrem que ele é suspeito de um assassinato ocorrido nos anos 90 — um corpo foi encontrado numa mala, mas sem possibilidade de identificação do cadáver.
Cameron é levado para a delegacia e afirma precisar de papel e caneta para mostrar algo ao investigador e a psicóloga que o interrogam. O investigador, um homem claramente violento, não está paciente, só quer o nome do falecido para notificar a família e dar continuidade ao caso; mas Cameron o prende ali como uma Sheherazade: ele tem uma história muito interessante para contar, que leva ao corpo encontrado na mala, mas não apenas.
Nos anos 90, Cameron foi jornalista em uma revista de entretenimento especializada em video-games. Seu trabalho chamou a atenção de Colin Ritman (Will Poulter), programador da Tuckersoft e grande ídolo do jovem Cameron. Colin já apareceu antes no universo de Black mirror, no filme interativo da série, Bandersnatch, que me senti na obrigação de assistir novamente e passei raiva por isso (eu adorei a ideia do episódio interativo, mas detestei cada momento que precisei fazer escolhas por conta do vai-e-volta de opções “erradas”). Colin surge em “Brinquedo” para mostrar a Cameron um jogo que pretende lançar, trata-se da simulação de vida Thronglets, com pequenos seres amarelos que se reproduzem no jogo enquanto você cuida deles. São formas de vida consciente capazes de vivenciar emoções humanas, e o jogo não apresenta conflitos ou objetivos. Quanto mais você joga e interage com aquela estranha forma de vida digital, mais eles evoluem. Cameron, fascinado pela proposta de resenhar um jogo inovador até então, furta uma cópia.
Fora do trabalho, uma redação na qual basicamente se comunicava apenas com seu chefe, Cameron tem o que se pode chamar de amigo — um único amigo. Conhecido apenas como Lump (Josh Finan), o rapaz é um traficante que se aproveita da boa vontade e solidão de Cameron para se hospedar em seu apartamento quando precisa vender ilícitos. Em uma dessas hospedagens, Lump oferece LSD para Cameron, que experimenta o ácido enquanto joga Thronglets e percebe que entende a linguagem dos bichinhos virtuais, assim como possui a capacidade de se comunicar com eles.
Na manhã seguinte, com Lump no sofá da sala, Cameron vai ao trabalho para terminar seu artigo sobre Thronglets. No caminho, ainda sob os efeitos do LSD, chega a passar mal no metrô com alucinações. Enquanto escreve, é abordado pelo seu chefe que recebeu um telefonema com a notícia de que o jogo havia sido cancelado, porque Colin “surtou de novo” (o primeiro surto foi em Bandersnatch). No colapso mental de Colin, o programador apagou dos servidores qualquer referência ao novo jogo, impossibilitando seu lançamento. Cameron corre para casa, ansioso por retomar de onde parou, só para descobrir que Lump entrou em seu quarto, acessou o computador e matou metade dos bichinhos virtuais de Thronglets.
O que Lump fez deixa Cameron tão furioso que ambos se agridem fisicamente e Cameron termina por matar Lump com o mesmo cinzeiro que é visto em um dos finais alternativos de Bandersnatch, quando o protagonista do interativo assassina o próprio pai, já que ele também utiliza um cinzeiro transparente. Os Thronglets se assustam e se escondem ao assistir a cena através de uma webcam. Quando Cameron desmembra e termina de ocultar o corpo de Lump, volta para o computador e promete cuidar deles.
Anos se passam, com Cameron cumprindo sua promessa, fazendo toda a manutenção e melhorando o hardware e o software do jogo, com cada vez mais aparelhos e códigos sofisticados. Em um dado momento, faz uma cirurgia em si mesmo com uma entrada para o seu cérebro, na intenção de se conectar totalmente com os Thronglets.
Voltando para a delegacia, onde Cameron expõe toda essa história, o investigador insiste em saber o nome de sua vítima, no que Cameron continua afirmando que só o conheceu como Lump, ainda implorando por papel e caneta. Vencido pelo cansaço e esperançoso de que Cameron dará mais informações sobre o corpo, ele cede e a psicóloga coloca na mesa o que Cameron quer. Ele começa a fazer o desenho de um QR code em formato circular, profetizando que aquilo mudará tudo em questão de segundos, pois a tecnologia dos Thronglets vai se fundir com os humanos e nada será como antes — basta que ele mostre o desenho para a câmera da sala, diretamente conectada ao computador mais poderoso do país. O QR code é um comando que atinge o servidor central quando lido pela câmera e transmite um ruído ensurdecedor através de todo e qualquer aparelho eletrônico em todo o mundo, a voz dos Thronglets, que apenas Cameron era capaz de ouvir. O episódio termina com todas as pessoas desmaiando enquanto escutam o ruído. E Cameron, de pé, estende a mão para o investigador que chegou a lhe agredir, deixando um final em aberto.
“Brinquedo” vem sendo recebido como um dos melhores episódios dessa temporada e, junto com “Pessoas comuns”, para mim é o que caracteriza “Black mirror raiz”, mostrando o quanto certos avanços tecnológicos podem ser prejudiciais. Não é possível saber o que acontece quando e episódio termina, pois Cameron é um personagem difícil de confiar. Sua personalidade isolada levou-o a tornar-se um homem de meia-idade com cabelo ensebado que veste o mesmo pijama de trinta anos antes (o fato de Cameron ser tão caricato assim me irritou um pouco). Além disso, ele é um assassino que nunca se entregou à polícia por acreditar que sua missão era obedecer aos comandos gerados por um jogo que aprende justo com ele do que a humanidade é capaz. Um belo exemplo de como a tecnologia mais avançada pode cair nas mãos erradas.
Meses atrás, vi uma conta gringa no TikTok em que um rapaz supostamente mostrava receber comandos de uma inteligência artificial que lhe pediu itens de hardware para existir fisicamente. E esse rapaz obedecia ao robô que criou. O TikTok é uma rede cheia de perfis interessantes que utilizam de teorias da conspiração para criar ficções. Lá, encontramos viajantes do tempo que vieram do futuro, mas também há quem diga viver em realidades paralelas nas quais humanos desapareceram e eles são os únicos a frequentar lugares antes movimentados em plena luz do dia, documentando tudo por vídeo.
A Netflix não perde tempo e fez de Thronglets um jogo que você pode acessar na própria plataforma, através do aplicativo para celular. E, obviamente, o jogo sai do controle assim como em “Brinquedo”, para tudo ficar mais realista, do jeitinho que Charlie Brooker gosta.
No futuro, espero ver mais episódios com o personagem Colin Ritman. Penso que um programador de jogos ainda rende muito.