"Bête noire", segundo episódio da sétima temporada de Black mirror
E se você pudesse manipular a realidade?
Na sexta temporada, Charlie Brooker, criador da série Black mirror, achou que seria boa ideia mudar o principal foco de tudo que rege a série — tecnologia — para o terror. “Demônio 79” até lançou uma espécie de novo selo, a “Red mirror”, que pode desencadear em novos episódios que caminhem pelo rumo do gênero (sinceramente, espero que sim). Em “Demônio 79”, uma vendedora de loja de sapatos encontra um artefato antigo e desbloqueia um demônio que lhe dá a seguinte missão: ou ela mata três pessoas antes do dia primeiro de maio de 1979, ou o mundo acabará em fogo. Só depende dela.
Lá para o final do episódio, com duas mortes bem sucedidas, a protagonista é presa pouco antes do fim do prazo para cumprir a profecia. Na sala de interrogatório, ela parece insana: tudo que diz, assustada, a coloca na posição de quem enlouqueceu e nunca mais voltará ao normal. Tanto o delegado quanto a investigadora do caso não sabem o que fazer com ela, quando de repente soam alarmes de emergência e eles correm para ver a primeira bomba atômica sendo jogada, enquanto a garota da profecia sai de mãos dadas com seu demônio, para com ele viver no obscuro e vazio eternos.
Esse episódio, que lembro de não ter sido bem aceito pelo público, é legal porque aborda temas como pessoas corruptíveis, imigração enquanto consequência da colonização e eleições nas quais quem vence são aliados do inferno — homens que se transformam em “agentes do caos" porque o diabo quis assim.
“Demônio 79” falha por parecer mais um episódio de Além da imaginação do que de Black mirror. O primeiro é a inspiração do segundo. A versão recente de Além da imaginação, hoje produzida e transmitida na Amazon prime video, parece Black mirror, só que não tão bom assim. Falta alguma coisa.
Não falta nada, no entanto, em “Bête noire”, segundo episódio da sétima temporada de Black mirror, esse sim um terror muito mais convincente. Imagine a realidade sendo distorcida bem diante dos seus olhos, sem que você possa agir contra. E, quando tenta, ninguém acredita no que você diz.
Maria (Siena Kelly) trabalha como executiva em uma empresa que fabrica chocolates. Sua dedicação ao trabalho é imensa, fazendo questão de participar de todos os processos: desde a construção de novos sabores, até a degustação para o consumidor final. Em uma dessas degustações, Maria reencontra Verity Green (Rosy McEwen), antiga colega de escola, com quem não tinha uma relação próxima, pelo contrário, porque Verity era esquisita e existiram boatos sobre sua vida íntima. Durante a degustação, Verity se destaca afirmando que o novo doce criado por Maria é excelente quando você experimenta de novo, sendo que o grupo tinha considerado aquele novo sabor como algo repugnante. Verity também chegou atrasada na degustação, mas convenceu a líder do grupo focal de que estava na lista de participantes. No dia seguinte, consegue um trabalho como assistente dentro da empresa, o que Maria estranha, já que não havia essa vaga em aberto.
A atriz que interpreta Verity Green parece uma Nicole Kidman jovem, o que não a torna necessariamente bonita, mas sim de um tipo de beleza que você precisa olhar de novo e fixamente para entender que ela é bonita mesmo. A atriz Charlotte Gainsbourg causa efeito semelhante. Pensei que viesse desse magnetismo a ideia de todo mundo acreditar no que Verity diz, enquanto somente Maria desconfia dela. Maria recorda que Verity não era muito sociável durante o colégio, o que contribuiu para sua fama ruim, uma vez que ocorreram boatos de que Verity se envolveu com um dos professores e isso gerou para ela o apelido de “leiteira”. Além disso, do pouco que se sabia sobre Verity, ela ficava trancada no laboratório de informática, sendo boa demais com computadores, enquanto Maria fez parte da turma mais popular. Como Verity se transformou nessa colega de trabalho amada no escritório? Maria não entende.
Percebemos que a competitividade e dedicação de Maria, outrora características boas para ela, aos poucos se mostram como atitudes de uma pessoa arrogante. Maria não aceita ter errado na receita de um doce que impressiona o CEO, em visita ao escritório. Tem certeza de que enviou para Verity o e-mail com os ingredientes certos, mas, conferindo-o, vê que errou o principal. Minha cena favorita é quando os colegas de trabalho estão discutindo sobre uma antiga rede de fast-food chamada Barnies, que Maria defende chamar-se Bernies, e ela tem certeza disso porque seu namorado trabalhou como atendente lá e tem um boné, que era seu uniforme, que ele usa todos os dias. No boné, segundo ela, está escrito “Bernies com ‘e’”, mas uma rápida ida ao Google mostra que… Maria está errada. Chegando em casa, conferindo o boné e conversando com o namorado, ele responde que ela deve ter caído no famoso “efeito Mandela”, uma teoria recente que discute que algumas pessoas viveram uma realidade paralela, mas as linhas do tempo cruzaram de novo, o que faz com que muitos de nós tenhamos lembranças que, supostamente, nunca existiram. Um exemplo bem brasileiro disso diz que crianças estavam assistindo Dragon ball na rede Globo quando o 11 de setembro se tornou uma das datas mais importantes da história da humanidade. Eu mesma acredito nisso até hoje, porque lembro de estar em casa assistindo televisão e a programação ter sido interrompida por conta do evento.
Maria tenta contato com uma amiga dos tempos de colégio que aparece em suas fotos daquela época, só para descobrir que a garota cometeu suicídio, apesar de ter constituído família e de não apresentar tendência a se machucar quando conviveram. Mais um fato que reacende a paranoia de Maria para com Verity. Sem o menor senso de educação, Maria questiona o marido de sua amiga falecida sobre ela ter reencontrado alguém dos tempos da escola pouco antes de morrer. O marido só consegue responder que a esposa parecia viver em uma realidade alterada, na qual tudo que todos diziam era mentira e apenas a verdade dela importava.
Em mais uma manhã no escritório, Maria perde uma reunião importante e, por se encontrar sozinha com Verity, confronta a colega sobre o que está acontecendo. Verity se faz de desentendida, mas abre a geladeira e bebe uma caixa de leite de amêndoas que uma de suas colegas, vegana, vinha reclamando há dias que alguém estava lhe furtando. Quando os demais funcionários retornam ao escritório, a colega dá pela falta do leite mais uma vez. Verity acusa Maria e todos acreditam nela, ainda que Maria afirme ser alérgica a nozes, um dos ingredientes daquele leite. Mas nem o Google reconhece o que é alergia a nozes e as câmeras de segurança mostram Maria bebendo o leite. Na tentativa de agredir Verity, Maria é demitida.
Mas ela espera em seu carro até o final do expediente e segue Verity até sua casa. Descobre que a colega vive em uma mansão, que ela invade e percebe no saguão supercomputadores enormes. Chegando ao quarto de Verity, enquanto ela toma banho, descobre um pingente que viu Verity usando por todo esse tempo de convívio. Quando Verity sai do banho, a verdade é revelada: ela afirma que, quando saiu da escola, tornou-se uma programadora especializada em computação quântica. Criou uma forma de manipular a realidade através de um controle remoto, que é o pingente, mesmo que estivesse fora de casa. Com isso, ela conseguiu se tornar astronauta, presidente, herdeira de monarquia e até mesmo imperatriz do universo. Mas nada disso foi o bastante para curar seu trauma de adolescência, portanto, buscava vingança. Foram necessários meses para fazer enlouquecer a melhor amiga de escola de Maria, mas apenas uma semana para que ela perdesse tudo que havia conquistado.
As duas entram em luta corporal. Com o pingente enquanto controle, Verity faz aparecer uma faca na mão de Maria, enquanto policiais estão a caminho da mansão para detê-la. Maria luta para não ser presa e alcança a arma de um dos policiais, matando Verity com um tiro em seu rosto. Ela consegue pegar o pingente dizendo que o mesmo lhe obedece. Ao se ver com o controle para mudar a realidade, Maria convence os policiais de que Verity tirou a própria vida, faz deles seus súditos e se declara imperatriz do universo.
A tradução para bête noire é “besta negra”, palavra que franceses utilizam para atestar que alguma coisa é horrível e deve ser evitada. Também denomina um bolo, pelo seu chocolate amargo presente e tão característico que não deveria ser apreciado pelo paladar, mas é. Com certeza uma das melhores escolhas de títulos para um episódio de Black mirror, que também aproveitou a dúvida sobre “Bernies” ou “Barnies” para jogar diferentes versões da palavra para a rede de fast-food, a depender do usuário que assiste, plantando um efeito Mandela da vida real como excelente estratégia de marketing — mas o correto é “Barnies”, porque esse fast-food aparece no episódio “Manda quem pode”, o terceiro da terceira temporada, que também discute manipulação de informações, já que o protagonista assiste pornografia infantil em seu computador e é chantageado por um hacker. Ele trabalha em uma lanchonete da Barnies.
O modelo e organização dos computadores quânticos de Verity se assemelham aos que estão presentes no fim do episódio “San Junipero”, também da terceira temporada. Porque esse título é provavelmente inspirado na pousada em que o casal do episódio “Pessoas comuns” passam os aniversários de casamento; desconfio que Verity, em alguma realidade, criou a start-up Rivermind que, posteriormente, evoluiu de serviço de streaming através de implante cerebral para uma gigante que armazena consciências de pessoas falecidas em um metaverso feliz.
Ah, senti falta de mais interpretações no seu texto! Entendo que é mais descritivo, mas fiquei com aquela coceira depois de assistir.
Não só coceira, esse é um episódio que não só é assustador, como exasperante, ao menos, pra mim. Estar enredado numa situação onde ninguém acredita em você me dá aquela mesma sensação de estar preso em um lugar, como uma caixa, onde você mal consegue erguer braços, pernas, mal tem espaço para o diafragma se erguer pra respirar. Por isso que a catarse da luta corporal e o tiro que matou a Verity foi muito bem-vinda. Obrigado, Charlie Brooker, por matar essa vilã de anime pra gente.
Mas fiquei aqui pensando muito na questão racial - tá aí no título, tá nas reações da Verity "ai, estou com medo dela, ela é muito agressiva". Porque, de certa forma, é uma hipérbole do racismo estrutural esse episódio: ser lançado numa realidade que desconfirma você o tempo todo porque uma pessoa branca disse algo que, magicamente, convence a todos.
Pra mim, a guinada mais maluca é aquele fim onde ela vira a Imperatriz do Universo. Mas é um episódio de extrapolações (por isso a sua lembrança com o Demônio lá, talvez?). Mas fico pensando o que isso diz da Maria e também diz das nossas balanças de poder, opressão, humilhação e dominação.